“Vamos ter um problema de falta de professores no ensino superior pior do que o do ensino obrigatório”

José Moreira, novo presidente do Snesup, tem urgência em discutir as carreiras do sector, mas está há quase seis meses à espera de resposta do Governo.

“A primeira coisa” que José Moreira fez quando começou a dar aulas no ensino superior em 1999 foi sindicalizar-se. Entrou no Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup) e cedo se tornou delegado sindical na Universidade do Algarve, onde ainda hoje dá aulas. Moreira tem 55 anos e é doutorado em Química-Física pela Universidade de Santiago de Compostela. Nos últimos anos, fez parte da direcção da organização sindical, que agora passou a dirigir, onde estão inscritos cerca de 6500 professores e investigadores.

Estamos a entrar na recta final de um ano lectivo marcado pela luta dos professores do ensino obrigatório. Porque não vemos o mesmo tipo de mobilização por parte dos professores do ensino superior?
Não vemos o mesmo tipo de mobilização porque os professores do ensino superior e os investigadores são extremamente individualistas, por formação. Mesmo quando trabalhamos em equipa, cada um vive muito centrado nos seus objectivos. Acabamos por nos fechar numa bolha. Apesar de ser uma classe com bastante formação académica, a participação cívica não é tão grande como seria de esperar.

Tendo em conta esse retrato que faz da profissão, dificilmente a luta dos docentes do superior aquecerá?
Eu tenho esperança que aquecerá, mas de uma maneira mais paulatina e, provavelmente, não tão intensa, como no caso dos professores do ensino não superior. Existem problemas complexos no sector e um deles que tem sido descurado, que é a questão da perda remuneratória. Desde 2004, perdemos entre 22 e 27% do poder de compra. Há outro problema que se arrasta há muito tempo, que é a precariedade. Temos cerca de 40% dos docentes e 70% dos investigadores em situação precária.

Como é que isto se resolve?
Passa por dois caminhos, o primeiro dos quais é revalorizar a carreira. Os índices remuneratórios da carreira têm de ser actualizados. Depois, neste momento, cada uma das categorias tem apenas quatro posições. E estamos a trabalhar numa proposta para aumentar este número de escalões dentro de cada posição de carreira.

Para que os leitores que não são do sector entendam: a carreira do ensino superior tem dois tipos de progressão. Tem a progressão vertical – as pessoas mudam de categoria (auxiliar, associado e catedrático), e dentro de cada uma dessas há quatro posições remuneratórias.
As pessoas podem transitar de posição de seis em seis anos, mas os docentes do ensino superior só progridem horizontalmente se somarem seis anos consecutivos de nota máxima. Pode acontecer que uma pessoa tenha um ano suficiente e não progrida. O que queremos obviamente é o que se faz no resto da função pública: ao acumular dez pontos, uma pessoa pode progredir.

O que está a propor implica mudar a arquitectura da carreira.
Os responsáveis das instituições de ensino superior, que antes eram muito "reaços" a essas coisas, porque só olham para a folha de pagamentos, já nos começam a dizer que isto é insustentável, porque não há como fazer uma gestão de pessoal moderna. As pessoas precisam de algum estímulo.

Haverá um momento em que estas carreiras deixam de ser interessantes?
Isso já está a acontecer. Os índices remuneratórios no início na carreira não competem com algumas áreas de maior intensidade tecnológica. A maioria dos docentes tem entre 50 e 60 anos e, daqui a dez anos, vamos ter um problema até pior do que o que está a acontecer no ensino obrigatório de falta de professores. Temos uma grande bolsa de doutorados, mas estas pessoas não vão continuar à espera até aos 50 anos para definirem as suas vidas. Muitos deles são precários há 20 anos, bolsa atrás de bolsa, contrato temporário atrás de contrato temporário.

Em Novembro, o MCTES anunciou que queria rever todas as carreiras do sector ao longo do próximo ano e meio e chamou os sindicatos para negociar um “roteiro negocial”. Em que ponto está esse processo?
Zero. A ministra entregou-nos um calendário, que devia começar em Novembro. Estamos em Abril e não aconteceu rigorosamente nada. Não tivemos mais nenhuma reunião, não fomos chamados para mais nenhuma negociação, nada.

Portanto, não vai ter respostas para me dar em nenhuma das perguntas que eu ia fazer a seguir.
Estavam muitas coisas em cima da mesa, desde o financiamento, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), os estatutos de carreira, as carreiras do ensino superior privado. Não sabemos nada.

Na semana passada, os reitores anteciparam dificuldades de algumas instituições de ensino em pagar salários na fase final do ano. Quão preocupado está com a situação financeira do sector?
Estou preocupado como todos os meus colegas anteriores estiveram. Há anos que se arrasta o problema do financiamento, e é preciso de uma vez encontrar uma forma de financiamento que permita às instituições viver com alguma previsibilidade e o contribuinte perceber exactamente o que é que está a pagar, em vez de os reitores e os presidentes dos politécnicos andarem todos os anos de chapéu na mão a negociar uma pequena margem no seu orçamento. Quanto aos problemas imediatos de não haver pagamentos de salários, isso obviamente será bastante dramático, mas o Estado é uma pessoa de bem e nós sabemos que haverá uma solução.

O Governo já anunciou um novo modelo de financiamento proposto pelo Governo. O que sabem?

Só sabemos o que transpareceu do estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), que normalmente é premonitório. Estávamos convocados para uma reunião em Abril, mas ainda não aconteceu, nem está nada marcado.

O estudo da OCDE propõe que a nova fórmula para distribuir o investimento do Estado nas universidades e politécnicos deva ser definida “do zero” (“zero-based budgeting” é a expressão adoptada no relatório), com um financiamento adicional que apoie, por exemplo, as instituições situadas em regiões onde a população está a decrescer. Concorda com isto?
Pode ser um bom modelo, mas tudo depende. Os gastos com pessoal são assumidos à cabeça ou não? Os gastos com a manutenção dos edifícios são assumidos? Se essas parcelas não estiverem definidas à partida, isso introduz uma completa ruptura no sistema, porque infelizmente boa parte do orçamento é dedicada a gastos com pessoal.

Por onde deve ir a revisão do RJIES?
Os Conselhos Gerais devem desaparecer, porque neste momento estes servem apenas para validar as políticas dos dirigentes das instituições de ensino superior. O único papel verdadeiramente importante e determinante que os Conselhos Gerais têm é a eleição do presidente ou do reitor. Sendo corpos com um número muito restrito de pessoas, é natural que os colegas, os estudantes, todos os envolvidos, não se sintam representados. Seria importante haver na eleição do reitor algum método de voto directo pelos corpos, para que ele tenha alguma legitimidade. O sistema antigo de Senado não era o ideal, mas funcionava um bocadinho melhor. É preciso aprofundar a democracia e a representação dentro das instituições do ensino superior e de ciência.

O Parlamento aprovou a possibilidade de os politécnicos atribuírem doutoramentos. Como vê o Snesup essa alteração?
Os doutoramentos implicam a existência de unidades de investigação, devidamente acreditadas, com uma avaliação de muito bom ou excelente. Com alguma ingenuidade, muitos institutos politécnicos acham que uma unidade de investigação se cria por uma decisão do presidente do instituto. Temos recebido telefonemas e e-mails de colegas mais ou menos em pânico a contar que saiu um despacho do presidente do seu politécnico que exige aos colegas fazer tudo para integrar as unidades de investigação nos respectivos politécnicos, dizendo que provavelmente não lhes vão dar autorização para continuarem em unidades de investigação internas onde possam estar. Nós não temos nada, antes pelo contrário, contra a possibilidade de os politécnicos fazerem este caminho, mas é um caminho que é preciso ser feito. Primeiro, é preciso dar algumas condições em termos infra-estruturais, depois é necessário ir convencendo as pessoas para que mudem a sua investigação dos laboratórios onde estão para os novos laboratórios que estão a ser criados. Tudo isto tem de ser um processo paulatino, que demora o seu tempo. Isso não se faz de um dia para o outro, nem de cima para baixo.

Samuel Silva 25 de Abril de 2023, Público