Como Portugal está a falhar na conciliação trabalho-família

A carreira não pode ser uma missão de vida

Conciliar a carreira e a família continua a ser um desafio difícil para os profissionais portugueses

Portugal está fora do quadro de mérito da OCDE na conciliação trabalho-família. Ausência de uma política eficaz de apoio à parentalidade é um dos fatores que penaliza o país

Na Holanda só 0,4% dos profissionais trabalham fora de horas e cumprem horários de trabalho longos (50 ou mais horas semanais). O país regista a terceira percentagem mais baixa de trabalhadores com horários longos (a seguir à Rússia e à Suíça) entre os países que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), revela o estudo “Better Life Index” divulgado pela organização. E isso, a par com outros fatores como a baixa taxa de desemprego registada entre as mulheres com filhos e a elevada percentagem de horas de descanso semanais, faz do país o campeão do equilíbrio trabalho-família. Portugal está longe desta métrica, mostram as estatísticas.

Por cá, as longas jornadas de trabalho são uma realidade para 8,3% dos profissionais, conclui o relatório sobre equilíbrio familiar e profissional. E a distância que separa os profissionais holandeses dos portugueses, no que respeita ao número de horas trabalhadas, é muito mais do que mera estatística. É a diferença entre ocupar a primeira posição na lista de países onde o bem-estar dos trabalhadores é mais respeitado e estar no meio da tabela, como Portugal, que ocupa a 23ª posição num leque de 45 países analisados. É a diferença entre ter uma relação saudável com o trabalho ou conviver com aquilo a que a psicóloga das organizações e docente da Universidade Católica de Braga, Fátima Lobo, chama de “toxicidade laboral”.

Líderes da conciliação

Há países onde trabalhar está longe de ser o mais importante para os cidadãos. E, para os especialistas, é assim que deve ser. “Essa é a relação saudável que devemos manter com o trabalho”, explica Fátima Lobo. Um relacionamento de compromisso e respeito, mas com a distância necessária para que não se torne “uma relação obsessiva” com impacto na saúde dos profissionais.

Nas contas da OCDE, países como a Holanda, Itália, Dinamarca, Espanha, França, Lituânia, Noruega, Bélgica, Alemanha, Suécia, Suíça e Rússia estão perto do modelo ideal de relacionamento com o trabalho. Qualquer um deles pontua bem e está perto dos melhores indicadores de conciliação trabalho e família, que avaliam fatores como o número de horas trabalhadas por semana, o tempo de descanso, o tempo disponível para atividades de carácter pessoal dos trabalhadores e a taxa de desemprego das mães.

Portugal investe menos de metade do que a média dos países da OCDE no apoio às crianças nos primeiros anos de vida

A Holanda apresenta boa avaliação na generalidade destes indicadores. “Os estudos indicam que o número de horas que trabalhamos tem impacto na saúde, coloca em causa a segurança laboral e é uma fonte de stresse”, explica a OCDE, acrescentando que no país “apenas 0,4% dos profissionais trabalham longas horas, mais de 50 semanais, a percentagem mais baixa entre os países da OCDE, onde uma média de 11% dos trabalhadores têm rotinas de trabalho longas”. O relatório revela que na Holanda, que lidera o ranking do bem-estar dos profissionais, os trabalhadores dedicam em média 16 horas diárias a atividades de cuidado pessoal (comer, dormir) e ao lazer (socializar com amigos e família, hóbis), superando a média diária de 15 horas registada nos demais países da OCDE. E é aqui que o cenário mais contrasta com a realidade nacional.

Portugal a meio da tabela, mas com alertas

Portugal está abaixo da média de horas que os profissionais dedicam a atividades de descanso e lazer, ficando-se pelas 14 horas. A OCDE aponta vários desafios a Portugal em matéria de conciliação trabalho-família, a começar pelas políticas de apoio à natalidade. A organização recorda que a taxa de natalidade do país está em queda há décadas e que atualmente é a mais baixa da OCDE, o que terá implicações a muito curto prazo. “Uma em cada dez mulheres com mais de 49 anos não tem filhos e cerca de metade dos portugueses são pais de filhos únicos”, reforça a organização, enfatizando que para inverter esta tendência “as famílias portuguesas precisam de mais apoios no cuidado às crianças, sobretudo nos primeiros anos de vida”.

As recentes alterações ao apoio parental, com alargamento das licenças e possibilidade de partilha entre os dois elementos do casal “ajudaram”. Mas “Portugal deveria investir mais fundos públicos no apoio a famílias com filhos”, defende a organização, que aponta como prioritário o alargamento da rede de creches e serviços à infância que permitam aos pais uma melhor conciliação trabalho-família. E recorda que o país investe menos de metade (€16.240 por criança) do que a média dos países da OCDE (€30.950) no apoio às crianças nos primeiros anos de vida.

Uma análise que Fátima Lobo aplaude: “É raro ver alguém assumir que a questão da natalidade está ancorada nos modelos de trabalho construídos ao longo dos últimos anos.” Para a psicóloga das organizações, “a relação que hoje temos com o trabalho subverte por completo os nossos valores sociais, a nossa relação com a família, com a parentalidade, com o cuidado a idosos e outras questões sociais críticas na sociedade atual”. Fátima Lobo reforça que “temos uma relação doentia com o trabalho e enquanto não tivermos a coragem de a alterar não conseguiremos resolver problemas sociais graves”.

Fátima Lobo refere que a crescente “toxicidade do trabalho não reside na natureza do trabalho em si, mas no modo unilateral de medidas que visam apenas o bem-estar financeiro da organização e não dos seus trabalhadores”, e revê-se na afirmação de Jeffrey Pfeffer, professor da Universidade de Stanford (EUA) e autor do livro “Dying for a Paychek” (Morrer por um Salário), quando diz que “o trabalho está a matar as pessoas e ninguém se importa”.

A docente argumenta que “há mais do que provas que as longas jornadas de trabalho e os modelos de avaliação de desempenho conduzem a situações de burnout, depressões, baixa natalidade, divórcios, suicídios, doenças e conflitos familiares”. A lógica puramente económica das relações de trabalho, a “centralidade do emprego” enquanto faceta dominante da nossa existência, acrescenta, “está a condicionar a vida humana e a colocar os profissionais numa situação de grande vulnerabilidade face aos empregadores. Deixámos de ser pessoas e passámos a ser seres que trabalham”.

Fátima Lobo reconhece que “há nichos de boas práticas a nível nacional, embora sejam muito poucos e alguns são estratégia de marketing”. “De que é que me serve ter um ótimo espaço de lazer dentro da empresa com matraquilhos e esplanadas? O importante não é o lazer dentro da empresa. É o tempo de lazer que temos fora, para fazermos o que nos faz felizes.”

Para a psicóloga, em matéria de políticas de bem-estar e conciliação, “estamos a abordar a coisa na perspetiva errada”. E realça, “andámos à procura das patologias de quem trabalha ao invés de identificar e tratar as patologias que proliferam nas organizações — baixos salários, equipas subdimensionadas, carga horária excessiva, desorganização — essas sim capazes de resolver os problemas”. O que estamos a fazer na generalidade das organizações atualmente, refere, “é um mero paliativo para o ‘cancro’. O problema continua lá”.

A carreira não pode ser uma missão de vida

Portugal está fora do quadro de mérito da OCDE na conciliação trabalho-família. Ausência de uma política eficaz de apoio à parentalidade é um dos fatores que penaliza o país

Cátia Mateus - Expresso 05.10.2019