Parecer (extrato) n.º 17/2019 - Diário da República n.º 72/2020, Série II de 2020-04-13  

Ministério Público - Procuradoria-Geral da República

Discriminação no acesso à GNR e à PSP

Conclusões:

1.ª O princípio da igualdade, na sua formulação moderna, é uma criação da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII, foi utilizado pela burguesia emergente para abolir os privilégios do antigo regime e, rapidamente, logrou consagração interna (nas Constituições da generalidade dos Estados) e internacional (Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948);

2.ª Em pouco tempo, o princípio da igualdade, baseado na igual dignidade de cada pessoa humana, tornou-se, assim, num princípio basilar de qualquer Estado de direito, conjugando as vertentes liberal, democrática e social que lhe estão, irremediavelmente, subjacentes;

3.ª Do ponto de vista liberal, a igualdade significa a igual posição de todos perante a lei, do ponto de vista democrático a igualdade proíbe descriminações positivas e negativas no exercício do poder político e no acesso a cargos públicos e, do ponto de vista social, ela implica a eliminação das desigualdades fácticas a fim de lograr uma igualdade real entre todos os cidadãos;

4.ª Não admira, por isso, que a Constituição da República, de 2 de abril de 1976, tenha proclamado, logo na sua versão inicial, que: «1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social»;

5.ª Deste modo, o princípio da igualdade converteu-se em «princípio disciplinador de toda a atividade pública nas suas relações entre os cidadãos» e, mesmo, ainda que em menor grau, nas próprias relações entre privados;

6.ª Nesta medida, o princípio da igualdade assume duas dimensões essenciais: «(a) proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias»;

7.ª A proibição do arbítrio é um limite à «liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual»;

8.ª A proibição de discriminações, por seu turno, não comporta uma proibição absoluta de diferenciação no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente impede que essas mesmas discriminações sejam desproporcionadas, arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante;

9.ª Para além do princípio geral de igualdade (art. 13.º), satisfazendo um claro movimento de alargamento do seu âmbito objetivo, a Constituição da República Portuguesa consagra, depois, alguns direitos fundamentais de igualdade, assim especificando determinadas situações concretas, que visam, igualmente, concretizar aquele princípio geral;

10.ª É o caso do direito «à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação» (art. 26.º, n.º 2), que foi introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro (5.ª revisão) no intuito de corrigir a prática social quotidiana, onde os comportamentos discriminatórios continuam a ser frequentes e de reproduzir, na ordem jurídica interna, as orientações dos grandes areópagos internacionais, cada vez mais preocupados com a efetivação real da igualdade;

11.ª O direito de acesso à função pública em condições de igualdade e liberdade (art. 47.º, n.º 2, CRP) compreende, por seu turno, essencialmente: o direito de aceder à função pública, não podendo nenhum cidadão ser excluído dessa possibilidade, por outros motivos para além da falta dos requisitos adequados à mesma; o direito à igualdade e à liberdade, não podendo haver discriminações de tratamento baseadas em fatores irrelevantes, nem atentatórios da liberdade; a regra do concurso como forma normal de provimento de lugares;

12.ª Finalmente, para assegurar o direito ao trabalho, incumbe, ainda, ao Estado promover a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais» (artigo 58.º, n.º 2, al.ª b), da CRP);

13.ª Para além do legislador, o princípio da igualdade também vincula o aplicador do direito e a própria administração, que está, em todas as suas atividades, maxime na admissão de novos funcionários, vinculada pela proibição do arbítrio e pela proibição de discriminação;

14.ª As Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho, o Conselho da Europa e a União Europeia dispõem de normas próprias criadas para garantir a igualdade e proibir a discriminação da pessoa humana, maxime, naquilo que ora nos interessa, de pessoas com deficiência ou da mulher grávida;

15.ª As Forças Armadas estão incumbidas da defesa militar da República (art. 275.º da CRP), sendo o acesso às mesmas, dadas as importantes funções que podem ser chamadas a desempenhar, restrito àqueles que tenham aptidão psicofísica compatível com a prestação de serviço militar;

16.ª Para o efeito, a fim de determinar tal aptidão, o acesso às Forças Armadas pressupõe a realização de provas de classificação e seleção que têm por finalidade determinar grau de aptidão psicofísica dos cidadãos para efeitos de prestação de serviço militar, em resultado do que lhes é atribuída a classificação de apto ou inapto;

17.ª A verificação desta aptidão ou inaptidão física e psíquica é realizada de acordo com as tabelas gerais de inaptidão e de incapacidade para a prestação de serviço por militares e militarizados nas Forças Armadas e para a prestação de serviço na Polícia Marítima bem como o quadro das condições sensoriais gerais, aprovadas pela Portaria do Ministério da Defesa Nacional n.º 790/99, de 7 de setembro, ao abrigo o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 291/99, de 3 de agosto;

18.ª Sem prejuízo de poderem ser criadas formas especiais de serviço para pessoas com deficiência, a verdade é que, desde que os requisitos físicos e psíquicos exigidos sejam adequados às funções de defesa nacional que vão ser desempenhadas, nada impede, nomeadamente o princípio da igualdade, a adoção dos mesmos;

19.ª A Guarda Nacional Republicana é uma força de segurança de natureza militar, constituída por agentes militarizados organizados num corpo especial de tropas e está dotada de autonomia administrativa e tem por missão, no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e proteção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei;

20.ª O pessoal da carreira de guarda-florestal integra a missão da Guarda Nacional Republicana através do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente assegurando todas as ações de polícia florestal, de caça e pesca, designadamente: a fiscalização do cumprimento da legislação florestal, da caça e da pesca, investigando os respetivos ilícitos; e, no âmbito florestal, a participação na defesa da floresta contra incêndio e, em especial, a investigação das causas de incêndios florestais (art. 37.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 247/2015, de 23 de outubro);

21.ª A Polícia de Segurança de Segurança Pública é uma força de segurança, uniformizada e armada, com natureza de serviço público e dotada de autonomia administrativa que tem por missão assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei;

22.ª Nos concursos de acesso à Guarda Nacional Republicana, incluindo à carreira de guarda-florestal, e à Polícia de Segurança Pública têm sido utilizados critérios de aptidão semelhantes aos constantes nas tabelas aprovadas por Portaria do Ministério da Defesa Nacional n.º 790/99, de 7 de setembro, para as Forças Armadas;

23.ª A utilização daquelas tabelas (desde que os pressupostos de aptidão/inaptidão que as compõem, não sendo arbitrários ou discriminatórios, possam ser constitucionalmente fundados atenta a função concreta que vai ser desempenhada) não é contrária ao disposto nos artigos 13.º, 47.º e 58.º da Constituição da República Portuguesa ou no artigo 4.º, n.º 1, alª c), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;

24.ª A organização das condições de admissão em tabelas, adequadas às funções específicas de cada uma destas corporações, é uma garantia essencial para evitar eventuais comportamentos discriminatórios, não podendo ser invocados outros requisitos ou circunstâncias e sabendo os candidatos, de antemão e em igualdade de circunstâncias, todos os requisitos mínimos que devem cumprir;

25.ª A gravidez é uma situação temporária, finda a qual a candidata poderá desempenhar em pleno as suas funções, não podendo por essa circunstância ser diferenciada, exceto quando as funções que, de imediato, passará a desempenhar comportem um risco reconhecido ou significativo para a vida ou a saúde da mulher e da criança, sendo, para esse efeito, proibido exigir a submissão a um teste de gravidez ou a apresentação de documento atestando a inexistência de tal estado;

26.ª Só razões clínicas de risco para a saúde da mulher e da criança, decorrentes das funções que vão ser imediatamente exercidas, podem ditar condicionamentos, que compatibilize o direito de ingressar, em igualdade de circunstâncias, com a salvaguarda da saúde; e

27.ª Os requisitos de admissão ou aptidão não devem, salvo os casos em que seja imprescindível usar cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, ser objeto de análise individual e concreta para a identificação de limitações de ordem funcional suscetíveis de constituir incapacidade ou diminuição da capacidade para o serviço de cada candidato e de fundamentar a consequente exclusão casuística.

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