Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 1/2020 - Diário da República n.º 7/2020, Série I de 2020-01-10

Supremo Tribunal Administrativo

Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «Relativamente a exames psicológicos de selecção realizados em concursos de pessoal, os candidatos têm o direito de obter certidão que respectivos testes, o seu próprio desempenho e as notações aí recebidas, mas não têm acesso à grelha abstracta de avaliação dos testes se esta estiver coberta por um sigilo relativo à propriedade científica do exame.»

(…)

a) O presente recurso visa a uniformização de jurisprudência quanto à questão de saber se, no âmbito de um procedimento de recrutamento de pessoal para a formação de inspetores estagiários da Polícia Judiciária, a Entidade Demandada se encontra ou não obrigada a fornecer cópias de todas as respostas elaboradas pela requerente no 4.º método de seleção - provas psicológicas - bem como cópia de todos os enunciados e respetiva grelha de correção delas.

(…)

Assim, a recusa de passar a certidão a pretexto dos direitos autorais não é satisfatória. Mas o Ministério da Justiça invocou uma objecção próxima da anterior - embora mais ligada ao direito de propriedade do que àqueles direitos. Ele crê que todo o conteúdo do exame psicológico deve manter-se em segredo, sob pena de se tornar imprestável em ocasiões futuras - o que gravemente prejudicaria a empresa que o possui e comercializa. E, partindo desta ideia, o Ministério conclui que a certidão pretendida pela recorrente incide sobre «documentos classificados» ou secretos - o que, a ser verdade, os tornaria absolutamente inacessíveis (art. 83.º, ns.º 1 e 3, do CPA).

Assim, e «primo conspectu», tal argumentação do Ministério da Justiça parece frágil. Se o pedido de certidão dos autos respeitasse a documentos classificados ou secretos, como ele diz, estaríamos perante um caso de completa inacessibilidade; e o júri teria actuado «contra legem» ao permitir uma consulta «presencial» dos exames psicológicos.

Todavia, essa discrepância - entre o que o recorrido agora afirma e o que o júri fez - não inutiliza, «ea ipsa» e por completo, a posição do Ministério. Convém notar que o pedido de certificação da aqui recorrente abrange duas distintas coisas: os testes que ela realizou (acompanhados das classificações parcelares que aí recebeu) e a grelha geral de avaliação do exame psicológico. Ora, o valor da objecção do Ministério da Justiça - fundada na natureza secreta dos dados a certificar - varia consoante o pretendido acesso verse sobre os testes ou sobre o leque abstracto dos critérios avaliativos. E consideraremos doravante esta distinção.

Em geral, é de admitir que o «dominus» de uma bateria de testes psicológicos pretenda rentabilizá-los em concursos sucessivos, e não apenas uma vez. Aceita-se que a fiabilidade dos testes depende, «inter alia», dos examinandos ignorarem previamente o seu conteúdo. Daí que uma divulgação ampla e pública do teor dos exames psicológicos lhes retire credibilidade e tenda a colocar o respectivo produto fora do mercado. Aliás, foi decerto para minorar este risco que o contrato celebrado entre a entidade promotora dos testes e a Administração incluiu cláusulas limitadoras do acesso aos exames.

No entanto, isto não significa que os testes feitos pelos candidatos sejam «documentos classificados» ou sujeitos a segredo (industrial, comercial ou relativo à propriedade científica - art. 83.º, n.º 1, do CPA). Afirmá-lo raiaria o absurdo, pois esses testes foram mostrados a todos os concorrentes que a eles se submeteram.

A questão é, evidentemente, outra. A empresa proprietária do exame psicológico quer mantê-lo num relativo segredo para oportunamente o reutilizar. Mas o uso sucessivo daquela bateria de testes tende a diminuir o sigilo, inicialmente absoluto, de que eles gozavam - já que os examinandos podem memorizá-los, ao menos em parte, e difundir o seu teor. A repetição do mesmo exame em vários concursos propicia esse desgaste, tornando-o menos fiável. Portanto, a recusa da certidão relativa aos testes não se funda num qualquer segredo intrínseco deles e oponível à peticionante - que até os viu e realizou. Tal recusa visa, muito simplesmente, evitar que a entrega de uma cópia dos testes propicie a sua divulgação pública, potenciando o relativo descrédito já inerente à utilização repetida do mesmo exame. Convém, todavia, notar que um conhecimento amplo do conteúdo dos testes, se desacompanhado da chave interpretativa das respostas ou reacções dos examinandos, ainda não traz a inutilidade absoluta do exame psicológico. E assim se vê que os autênticos opositores da recusa - de se emitir uma certidão dos testes da recorrente - são os candidatos, por ora indeterminados, que futuramente se sujeitem ao dito exame psicológico.

Assim, é impossível olhar o interesse da proprietária do exame na não divulgação das provas de cada candidato e, dessa premissa, extrair a consequência de que aí nos deparamos com documentos classificados ou secretos. Aquele interesse é aceitável; mas é precário, pois pode vacilar ou claudicar a cada concurso em que os mesmos testes se utilizem - se houver candidatos que os vão tornando públicos.

Tudo isto conflui numa única conclusão, aliás incontornável: não faz sentido opor a alguém a índole sigilosa de uma coisa que já lhe foi voluntariamente mostrada pelo opositor. Pelo que o estatuído no art. 83.º, n.º 1, do CPA não obsta a que a recorrente obtenha certidão das provas que fez e da notação que nelas recebeu.

Questão diversa é a ligada à certificação da grelha avaliativa, que nenhum candidato conheceu e cuja divulgação pública inutilizaria instantaneamente aquele exame psicológico - em muito excedendo o desgaste, atrás assinalado, inerente à sua utilização sucessiva. Essa grelha foi elaborada segundo critérios científicos, correspondendo a ciência aplicada; ela é indissociável do exame psicológico cuja propriedade cabe à empresa externa contratada pela Administração; e está, como dissemos, sujeita a segredo, sob pena dessa propriedade científica perder imediata e completamente o seu valor.

Assim, e neste campo, é de concluir que a recorrente, face ao disposto no art. 83.º, n.º 1 e 3 do CPA, não tem o direito de aceder a essa grelha nem, «a fortiori», de obter uma certidão dela; pois isso feriria o segredo relativo à «propriedade científica» da sociedade promotora do exame psicológico.

Objectar-se-á que esta solução converte os exames do género numa espécie de «arcana praxis», imune a uma genuína sindicabilidade. Mas tal objecção é exagerada.

Decerto que qualquer candidato deficientemente avaliado num exame psicológico tem o direito a conhecer as razões disso e de questionar tal desfecho. Ora, este desiderato atinge-se suficientemente pelo acesso às provas e às notações aí atribuídas, sem necessidade de um concomitante recurso às grelhas abstractas que antecederam as várias pronúncias de avaliação. Deste modo, o direito da aqui recorrente à informação procedimental permanece essencialmente intacto, assim se compatibilizando com o sigilo científico a garantir «ex vi legis». Note-se, contudo, que essa compatibilização ou harmonia não é fruto de uma ponderação judicial que agora fizéssemos - pois flui, «recte», do próprio teor do art. 83.º do CPA.

Subsiste, ainda, uma derradeira dificuldade, decorrente da Administração dizer que não dispõe de três dos testes realizados pela candidata. Mas essa indisponibilidade, a existir, ou é superável ou insuperável. No primeiro caso, e porque a «ratio» da intimação tem de abranger todos os testes efectuados pela candidata - incluindo, portanto, perguntas, respostas e notações - a Administração deverá obter essas três provas e incluí-las na certidão. No segundo caso, há-de a Administração justificar a sua impossibilidade de aceder aos mesmos testes, emitindo a correspondente certidão negativa - e arcando com os efeitos deletérios que acaso advenham da inobservância plena do direito à informação da recorrente.

E, culminando o que dissemos, uniformizamos a jurisprudência nos seguintes termos:

Relativamente a exames psicológicos de selecção realizados em concursos de pessoal, os candidatos têm o direito de obter certidão que abranja o conteúdo dos respectivos testes, o seu próprio desempenho e as notações aí recebidas, mas não têm acesso à grelha abstracta de avaliação dos testes se esta estiver coberta por um sigilo relativo à propriedade científica do exame.

Nestes termos, acordam em anular o acórdão recorrido e, deferindo em parte o pedido, em intimar o Ministério da Justiça a emitir e a entregar à requerente certidão do seu exame psicológico, com o âmbito acima definido, e em absolver o demandado da pretensão de que também se certificasse a grelha de avaliação do exame psicológico.