Metade das bolsas de doutoramento fora das universidades: teme-se que só favoreça a ciência aplicada

Elvira Fortunato quer que em 2027 metade destas bolsas seja atribuída fora do ambiente académico. Especialistas apontam que a medida é apressada e prejudicial para áreas com menor tecido económico.

Desde a entrada no Governo, há um ano, uma das medidas mais repetidas pela ministra da Ciência, Elvira Fortunato, destina-se a um novo quadro para as bolsas de doutoramento, aplicado em tempo recorde: até 2027, pelo menos metade destas bolsas deve ser atribuída fora das universidades e dos institutos politécnicos. Mas, apesar de concordarem com o sinal positivo desta medida, os especialistas contactados pelo PÚBLICO advertem para a hipótese de o prazo de quatro anos ser apressado e de esta quota poder prejudicar as ciências não aplicadas – beneficiando áreas como as engenharias ou a saúde, por exemplo, que já recebem tipicamente mais bolsas de doutoramento.

As bolsas de doutoramento atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) são um dos principais instrumentos de financiamento da investigação científica e um dos motores da inscrição de alunos neste grau académico. Em 2023, tal como no ano passado, há um total de 1450 bolsas de doutoramento a atribuir entre as mais diversas áreas de investigação. Já no ano passado, existiram 150 vagas dedicadas a entidades fora do ambiente académico – como empresas, administração pública ou organizações não governamentais, por exemplo –, mas apenas 102 foram atribuídas. Este ano, a FCT anunciou um novo máximo: poderão ser dadas até 400 bolsas, de entre estas 1450, a entidades não académicas.

Em conversa com o PÚBLICO, Sónia Cardoso, investigadora da Universidade Lusófona que se debruça há vários anos sobre a educação doutoral em Portugal e na Europa, afirma que simpatiza com a medida em abstracto, mas assinala várias dimensões em campo. “Ao aumentar o financiamento de bolsas de doutoramento em ambiente não estritamente académico, espero não estarmos a diminuir as outras”, nota. Essa é uma das críticas mais vincadas à execução desta medida. Das 1450 bolsas de doutoramento, em 2023, até 400 serão reservadas para o contexto não académico, sobrando assim 1050 bolsas para os doutoramentos nas universidades.

Mas há uma outra questão: “Isto também pode provocar um desequilíbrio na oferta de doutoramentos e na aposta em áreas científicas consideradas mais competitivas e que contribuirão mais para a economia do conhecimento, como as áreas de ciências, tecnologias, engenharias e saúde, em detrimento de áreas que não encontram uma replicação no tecido económico e industrial – e podem ser deixadas de lado”, explica Sónia Cardoso, que é secundada por Orlanda Tavares, especialista em políticas para o ensino superior da Universidade Lusófona, e Bárbara Carvalho, da Associação de Bolseiros de Investigação Científica.

A ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior discorda, como referiu numa audição parlamentar na Comissão de Educação e Ciência, a 7 de Março: “Temos de apostar sempre na investigação básica. No meu entendimento, não consigo ver uma investigação muito fundamental e uma muito aplicada. Para mim, elas estão hoje misturadas”, disse Elvira Fortunato.

Até à data de publicação deste artigo, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior não acedeu ao pedido de esclarecimento enviado pelo PÚBLICO sobre esta medida.

Não temos organizações, seja no sector empresarial, público ou social, com capacidade para absorver os doutorados que formamos, e muitos acabam por emigrar por causa disso

As empresas não conseguem absorver os doutorados

“Em Portugal, o tecido empresarial é muito pouco desenvolvido comparativamente com outros países europeus. A aposta neste tipo de doutoramentos poderá ser uma forma de desenvolver mais esse tecido empresarial que ainda tem muito caminho para fazer”, aponta a investigadora Orlanda Tavares.

Aumentar os doutorados em contexto empresarial é um dos argumentos repetidos por Elvira Fortunato, indicando que, em 2020, apenas 8% dos doutorados estão empregados em empresas – dados resultantes de um inquérito aos doutorados realizado pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. Ainda assim, este valor representa um salto de 38% entre 2015 e 2020, de 2156 doutorados em empresas para 2969.

“Neste momento, não temos organizações, seja no sector empresarial, público ou social, com capacidade para absorver os doutorados que formamos, e muitos acabam por emigrar por causa disso”, complementa Cláudia Sarrico, investigadora da Universidade do Minho, que tem estudado a política científica em Portugal.

A discussão sobre a capacidade de absorção de doutorados por parte das empresas não é nova, mas adensa-se com o aumento dos estudantes com este grau universitário e com a impossibilidade de o sistema científico e académico os conseguir empregar a todos. “Não há maneira de o ensino superior absorver todos os doutorandos que estamos a formar”, nota Cláudia Sarrico. A FCT tem mais de 7200 bolsas de doutoramento activas este ano, de acordo com os números divulgados pela própria FCT, instituição na dependência directa do Ministério da Ciência.

“A partir dos anos 2000, nós tínhamos 35 vezes mais doutorados do que nos anos 1970. Há aqui uma explosão de doutoramentos. Se numa primeira fase esta era uma forma de os diplomados entrarem no mundo académico, hoje não há capacidade para integrar todos esses doutorados”, contextualiza Orlanda Tavares.

Estão os empregadores preparados?

A FCT abriu um formulário para que as empresas, organizações não governamentais, hospitais e outras instituições públicas pudessem manifestar o interesse em acolher doutorados. No entanto, como diz a FCT em resposta ao PÚBLICO por e-mail, as mais de 400 manifestações de interesse desde Janeiro deste ano (numa lista que fica ininterruptamente aberta) são apenas um exercício de intenções. “Aquando do período de candidaturas, de 1 a 31 de Março [de 2023], qualquer candidato poderá apresentar a sua candidatura a bolsas, com quaisquer entidades, académicas ou não académicas, independentemente de estas terem ou não manifestado interesse”, responde a FCT.

A transferência de conhecimento académico para a economia é um dos principais vectores desta discussão. Na audição parlamentar de 7 de Março, Elvira Fortunato defendia isso mesmo: “Temos de permitir que o conhecimento feito nas universidades seja transformado em inovação e tem de ir para o sistema económico. Só assim é que o país evolui.”

Mas os empregadores estão preparados? “Há uma percepção, mesmo em doutorandos destes programas noutros países, que o tecido empresarial e não académico não está preparado para os receber”, diagnostica Sónia Cardoso.

“Se noutros países, que já têm doutoramentos profissionais ou em contexto empresarial, isto se nota, então em Portugal esta é uma variável a ter ainda mais em atenção, porque o nosso tecido empresarial é constituído basicamente por pequenas e médias empresas. Mesmo as entidades que se propõem agora, como as autarquias ou as organizações sem fins lucrativos, não são intensivas em termos de investigação”, acrescenta.

Cláudia Sarrico refere que, quando uma organização contrata um primeiro doutorado, a probabilidade de contratar mais doutorados aumenta. “A ideia de começar desde o início a fazer o doutoramento em colaboração poderia aumentar depois a capacidade de absorção [de doutores] dessas organizações. Se vai haver disponibilidade por parte das organizações para acolher esses doutorados, não sei”, diz.

“Há também uma reticência dos empregadores não académicos e o não reconhecimento de valor e daquilo que o doutorado pode trazer para estas entidades”, acrescenta Sónia Cardoso, identificando estes dois pontos problemáticos também noutros países europeus. “Em Portugal, estes factores podem ser mais agudizados pelas características do nosso tecido empresarial. E isso não se faz em quatro anos.”

Doutoramentos em empresas: mais precariedade?

Uma das críticas, referidas por Bloco de Esquerda e PCP na audição parlamentar de 7 de Março, é a extensão da precariedade das bolsas de doutoramento para fora da academia. Algo secundado por Bárbara Carvalho, que representa os bolseiros de investigação em Portugal: “A bolsa é um vínculo altamente precário e esta medida transfere também para as empresas, a administração pública e o sector social esta figura. Isto vem alargar a figura do bolseiro a outros sectores.”

A ministra Elvira Fortunato contrapõe que esta medida traz precisamente o oposto: “Estas 400 bolsas em ambiente não académico vão exactamente diminuir a precariedade. É muito pior estarmos a formar alunos de doutoramento somente em ambiente académico, que depois não tem capacidade de ficar com eles”, disse na audição parlamentar.

O último programa de doutoramentos em empresas decorreu entre 2012 e 2017 em Portugal, numa experiência para a qual não há dados públicos de monitorização sobre a potencial contratação dos estudantes que frequentaram esses mesmos doutoramentos. “Mesmo esses doutoramentos industriais que existiam na altura eram de facto em engenharia e saúde. São áreas em que a empregabilidade é muito mais clara. Nas humanidades e nas artes, os próprios académicos entendem a empregabilidade de forma diferente, são competências mais holísticas e generalistas”, diz Orlanda Tavares.

Os incentivos fiscais para empresas que contratam doutorados e investem em ciência e tecnologia já existem há vários anos. O Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresariais (SIFIDE), que já existia desde 1997, ganhou relevo com as actualizações que beneficiam sobretudo a contratação de doutorandos. Mas não só. As conclusões de uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças ao SIFIDE, de Janeiro deste ano, afirmam que “foram identificadas situações de crédito fiscal indevido no valor de 3,19 milhões de euros”, apesar de reforçar a eficácia deste incentivo na promoção do investimento privado em investigação e desenvolvimento.

A contratação de doutorados pelas empresas e pelo tecido não académico não é nova para Elvira Fortunato, que em 2021 referiu em várias entrevistas a necessidade de trabalhar com o tecido empresarial, nomeadamente afirmava numa entrevista ao Diário de Notícias: “Nunca podemos ficar com todos os alunos de doutoramento que se formam nos nossos laboratórios, eles têm de ser os nossos embaixadores junto das empresas e contribuir para a economia nacional e europeia.”

Tiago Ramalho 5 de Abril de 2023, Pública