Endogamia académica: o caso de um concurso para professor que chegou ao Ministério Público

 

A Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa fez uma participação ao Ministério Público alegando “falsas declarações” de um candidato a professor associado. O caso acabou agora arquivado, mas trouxe à baila o problema da endogamia académica e a forma como se fazem muitos concursos públicos.

Foi José António Salcedo (gestor do Praxis, programa de apoio financeiro da ciência, em 1994 e 1995) quem denunciou na sua página de Facebook este caso em que foi membro do júri como professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. “Senti-me na obrigação de publicar uma nota na minha página de Facebook porque há vários anos que critico posições e atitudes de endogamia em instituições académicas”, conta José Salcedo ao PÚBLICO sobre este caso.

O que é a endogamia académica? Segundo um relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência para 2015-2016 – que analisou o percurso dos professores de carreira a leccionar nas universidades públicas portuguesas –, a endogamia académica refere-se “a situações de imobilidade profissional em que um docente do ensino superior desenvolve a sua actividade de investigação e docência na mesma instituição de ensino em que recebeu a sua formação académica original, sem que, de permeio (…), tenha tido posições com duração significativa em entidades externas.” Conclui-se que cerca de 70% dos docentes doutoraram-se na mesma instituição onde dão aulas.

José Salcedo reconhece que, se considerarmos esta definição “mais clássica”, não se está perante esse fenómeno, uma vez que o candidato interno à FCT-UNL não fez lá o seu doutoramento. Mas, como “se procurou favorecer o candidato da casa”, considera que se trata de endogamia académica, frisando três aspectos: a área “demasiado restrita” do concurso (engenharia de lasers), as discussões nas reuniões para selecção dos candidatos, e a participação ao Ministério Público.

Orientação ou co-orientação?

Recapitulemos a história. Publicado em Diário da República a 21 de Dezembro de 2017, o concurso público destinava-se ao “recrutamento de um posto de trabalho de professor associado, na área disciplinar de física, subárea de Lasers Engineering” para o Departamento de Física da FCT-UNL.

O que se tem feito para combater a endogamia académica?

O júri – com cinco membros, três externos à faculdade e dois da instituição – avaliou dois candidatos. Um era Dawei Liang, professor auxiliar do Departamento de Física da FCT-UNL. Embora não tenha feito o doutoramento na instituição – fê-lo na Universidade de Chongqing (China) em 1990 –, está na faculdade desde 1991. O outro candidato era António Lobo Ribeiro, actualmente professor associado com agregação na Universidade Fernando Pessoa, no Porto (e de quem José Salcedo foi professor há 30 anos e com quem tinha fundado a empresa Multiwave Networks Portugal). Doutorado em óptica aplicada e lasers na Universidade do Porto, António Lobo Ribeiro é também consultor científico da Comissão Europeia.

Na primeira reunião do júri em Abril de 2018, analisou-se o currículo dos candidatos. José Salcedo não esteve nesta reunião, porque diz nunca ter recebido notificação para tal. Mas, segundo a informação que obteve, os membros externos à faculdade referiram que António Lobo Ribeiro reunia “melhores condições, como maior qualidade e mais experiência, segundo os critérios que tinham sido publicados no Diário da República”. Provisoriamente, António Lobo Ribeiro ficou em primeiro lugar no concurso.

Meses depois houve uma segunda reunião, onde José Salcedo já esteve. Como subscreveu a apreciação dos outros elementos do júri externos à faculdade, António Lobo Ribeiro ficou então em primeiro lugar.

“Senti algumas dificuldades na reunião, que decorreu num ambiente tenso e até desagradável”, conta José Salcedo. “A opinião das pessoas da casa era de que a avaliação dos membros externos do júri não correspondia ao que deveria corresponder. Na sua opinião, essa avaliação deveria atender com especial cuidado ao currículo dos candidatos nos últimos cinco anos.” Este é um critério que consta em muitos concursos públicos, diz José Salcedo, mas que não estava no edital deste concurso. “Se tivéssemos feito isso, admito que teríamos preferido o candidato interno em vez do externo”, realça.

Para José Salcedo, essa reunião teve ainda algo “muito estranho”: uma jurista em representação da faculdade. “Foi o primeiro júri académico [em que participei] em que estava presente uma jurista.” A jurista, segundo José Salcedo, referiu que o currículo de António Lobo Ribeiro tinha “um conjunto de impossibilidades”.

Quem levantou essas “impossibilidades” foi o candidato Dawei Liang, como consta numa carta da presidente do júri do concurso, Maria Adelaide de Jesus, professora catedrática da FCT-UNL, enviada ao director da FCT-UNL, Virgílio Cruz Machado, e que se encontra agora no processo do Ministério Público consultado pelo PÚBLICO. Dawei Liang “dirigiu um requerimento ao senhor reitor da UNL, no qual veio a alegar terem sido prestadas falsas declarações pelo candidato António Lobo Ribeiro, no âmbito da sua candidatura ao concurso”, refere a carta da presidente do júri. Maria Adelaide de Jesus, que nunca respondeu ao PÚBLICO, expôs então a situação a Virgílio Cruz Machado, para que o director da FCT-UNL, “se assim o entender, denuncie judicialmente os factos aqui em causa”, como se lê na acta da reunião, também no processo do Ministério Público.

Para Dawei Liang, são falsas as seguintes declarações de António Lobo Ribeiro: dizer no seu currículo que tinha sido orientador de três estudantes, quando só teria sido co-orientador; referir que foi co-orientador de uma outra aluna, quando não o teria sido; ter mudado a sua página da plataforma DeGóis após o pedido de esclarecimento do júri; e ter-se declarado como um dos inventores de uma patente que teria sido recusada. Contactado por email para esclarecer estas alegações, Dawei Liang também nunca respondeu.

“Não confirmo nem desconfirmo”

Numa carta assinada pelo director da faculdade em Novembro de 2018, a FCT-UNL avançou então com uma participação ao Ministério Público sobre as “falsas declarações” de António Lobo Ribeiro pedindo “a abertura de inquérito instaurando o respectivo procedimento criminal”.

Endogamia e universidades

Depois de vários pedidos para esclarecer especificamente este caso (incluindo por email), Virgílio Cruz Machado aceitou falar por telefone. Começou por se mostrar surpreendido quanto ao conteúdo do telefonema, depois disse desconhecer os pormenores do caso – “não estou muito dentro porque sou director há relativamente pouco tempo e herdei uma série de concursos”, “tenho alguma dificuldade em perceber realmente o que aconteceu” – e, mais à frente na conversa, referiu: “Realmente tenho ideia de uma coisa qualquer desse género.”

Na conversa, o director da FCT-UNL nunca confirmou se a faculdade fez uma participação ao Ministério Público. “Não confirmo nem desconfirmo. Tenho ideia que há situações em que pode haver uma situação dessa natureza, mas não lhe sei dizer se foi essa situação que está a apontar.” Por fim, Virgílio Cruz Machado referiu-se a este caso como “um pormenor” e disse que iria falar com a presidente do júri para perceber melhor o que teria acontecido, marcando uma conversa com o PÚBLICO para esse dia à tarde.

Essa conversa veio a ser desmarcada num email enviado pelo secretariado da direcção a informar que, devido a alterações na sua agenda, o director não estaria disponível à hora marcada e que “alguma informação adicional” deveria seria pedida por email. “Confirma-se ainda que a faculdade enviou comunicação ao Ministério Público na sequência de dúvidas sobre eventuais falsas declarações suscitadas pelo júri e enviadas ao director da faculdade”, lê-se nesse email. O PÚBLICO voltou a pedir esclarecimentos a Virgílio Cruz Machado, sem resposta até à publicação deste artigo.

“Ofensa à honra”

Jorge Castela, advogado de António Lobo Ribeiro, conta que o processo foi arquivado há cerca de duas semanas, a 8 de Abril. “O Ministério Público pronunciou-se com um despacho formal de arquivamento e, neste momento, o processo morreu. O Ministério Público não encontrou fundamento algum para que aquela denúncia tivesse tido lugar.” Até ao próximo domingo, 28 de Abril, ainda poderá haver uma reacção das partes envolvidas ao despacho do arquivamento, informa Jorge Castela.

“Os factos comunicados não constituem ilícito de natureza criminal”, conclui-se no despacho do arquivamento sobre as alegadas “falsas declarações”. E, quanto à patente, o despacho refere que “se conclui não se ter[em] reunido indícios da prática de crime”. Essa patente tinha sido pedida ao Gabinete de Patentes dos EUA pela empresa Multiwave Photonics, também fundada por José Salcedo. António Lobo Ribeiro era o principal inventor, tendo cedido a invenção àquela empresa. “A partir deste momento, a responsabilidade de António Lobo Ribeiro cessou, pois a empresa era detentora da totalidade dos direitos associados à patente”, conta José Salcedo. Ao fim de dois anos, por uma decisão comercial, a empresa retirou o pedido de patente.

O concurso público está agora suspenso, ainda segundo o processo no Ministério Público. Sobre se o candidato António Lobo Ribeiro continua interessado neste concurso, Jorge Castela diz que o cientista está a ponderar. “Ficou muito desagradado porque puseram em causa todo o seu currículo por uma denúncia que se revelou falsa”, afirma o advogado. “O meu constituinte foi vítima de uma ofensa à sua honra e dignidade a partir do momento em que se levantaram suspeitas sobre os documentos que apresentou a concurso.” Para Jorge Castela, pode estar-se perante os crimes de injúria, difamação e denúncia caluniosa. E agora António Lobo Ribeiro está a equacionar se avança com uma participação criminal por denúncia caluniosa e difamação.

Para José Salcedo, este caso também questiona os “falsos concursos públicos”, feitos à medida de uma pessoa: “O problema está em a lei tratar a ‘promoção na carreira académica de um docente’ da mesma forma do que a ‘contratação de um docente novo’. Quando as instituições pretendem promover um docente, têm de abrir um concurso público, ao qual podem sempre concorrer pessoas externas à instituição.” Por isso, acrescenta José Salcedo, a instituição distorce a avaliação dos candidatos para escolher o da casa. “A tentação da endogamia é grande.”

Como tal, José Salcedo defende que a promoção de um docente seja realizada pela prestação de provas públicas e um júri externo, enquanto a contratação de um docente novo deveria ser feita por concurso público e um júri externo. “As universidades deveriam ter autonomia total para decidir como pretendem promover os seus docentes, assim como para contratar docentes novos.”  

Teresa Sofia Serafim

24 de Abril de 2019, Público