Gonçalo Velho. ‘O combate à precariedade no Superior é um logro’

O Governo lançou dois programas para a contratação de professores e investigadores com vínculos precários há largos anos. Um dos programas tinha como meta contratar até ontem dois mil docentes. A meta ficou por cumprir e o problema da precariedade «não ficou resolvido», garante Gonçalo Velho.

Combater e resolver a precariedade no Ensino Superior é uma das bandeiras assumidas pelo Governo, que se prepara para anunciar este fim de semana novas medidas no setor. O ministro do Ensino Superior e Ciência, Manuel Heitor, anunciou que até ao final da legislatura queria contratar cinco mil docentes e investigadores. Destes, dois mil deveriam estar contratados até ontem. No entanto, de acordo com os dados de 29 de agosto, tinham sido formalizados apenas 114 contratos.

Estes são alguns dos números que o presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), Gonçalo Velho, comenta em entrevista ao SOL. Para o professor, no Superior a precariedade está longe de estar resolvida e revela-se «um logro». O dirigente sindical tece duras críticas ao ministro - que até assumir funções governativas foi professor do Superior - acusando-o de não cumprir a lei.

Quais são os principais problemas no Ensino Superior?

Temos vários problemas. O programa de combate à precariedade é um logro. Já verificámos que o Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) na ciência revela-se um desastre face aos outros setores da Função Pública. Basta comparar aquilo que são os resultados do Ministério da Educação com os resultados do Ministério do Ensino Superior. São completamente díspares. Num há de facto uma integração. No Superior é completamente negativo para os mais qualificados, ou seja, para os docentes e para os investigadores, que são os mais penalizados.

Como está o combate à precariedade no emprego científico?

É o setor mais atrasado. Este é o ministério dos atrasos. De todos os setores da Função Pública, o Superior, apresenta os piores resultados do PREVPAP. Em relação à lei do emprego científico, todos conhecemos a novela. Nunca tinha visto um ministro que desautoriza a própria lei. O decreto-lei 57/2017 estabeleceu o prazo de 31 de dezembro de 2017 para regularizar os contratos dos professores e o ministro disse às instituições para ignorar. Temos agora o prazo de 31 de agosto e já exprimiu, mais uma vez, que este prazo pode ser indicativo. Se nunca temos um prazo, se nunca temos um valor, se nunca temos uma lei, o resultado obviamente que é este: o ministério que nunca cumpre.

E como veem todos estes incumprimentos da lei?

Há espanto das pessoas perante o incumprimento da lei. Como é que se explica a um investigador e a um docente do Ensino Superior que afinal a lei não é bem para cumprir e que o ministro afirma que aqueles prazos são apenas indicativos? Neste momento ainda estamos todos em estado de choque perante esta situação. O que está em causa é o Estado de Direito. Não é fácil para pessoas que são rigorosas e que são cumpridoras perceber aquilo que é uma falência do Estado de Direito.

O Governo anunciou a meta de contratar cinco mil professores e investigadores através desta lei. Vai ser possível?

Tenho muitas dúvidas que seja cumprido, independentemente das já não sei quantas linhas que o ministro anunciou. O ministro criou as linhas com que se vai coser. Sabemos que vários reitores deram a indicação para que os concursos abrissem o mais perto possível da data de 31 de agosto. Que é mau. É muito mau. Daí a minha reserva com os resultados.

Mas quantos contratos já foram realizados?

Vendo as situações sinalizadas, o número parece-nos baixo face aos objetivos. Os números finais vão ser conhecidos a 31 de agosto mas a medida pretendia atingir cinco mil professores e investigadores até ao final da legislatura. Destes, 2.076 estavam sinalizados na norma transitória. Ou seja, deviam ser celebrados contratos até 31 de agosto de 2018. De acordo com o Observatório do Emprego Científico, a 29 de agosto, dos 2.076 estavam validados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) [para receberem financiamento] apenas 1.762 contratos e só foram abertos 1.592 concursos. E só foram formalizados 114 contratos. Num ano, as instituições de ensino superior abrem mais concursos para docentes do que os contratos celebrados até 29 de agosto. E o número andará por aqui, não vai escapar muito, na norma transitória devemos rondar estes 1.500. Vai ficar sempre muito aquém e não vamos chegar aos dois mil. No total, dos cinco mil, a 29 de agosto, só estavam celebrados 669 contratos, incluindo 444 contratos do regime transitório dos politécnicos [professores com contratos que terminaram o doutoramento]. Torna-se cada vez mais difícil de acreditar nos cinco mil.

Os contratos formalizados resolveram as situações de precariedade?

Dos 1.592 concursos abertos, a 29 de agosto, 93,7% são precários, a termo ou a termo incerto. Apenas 6% dos contratos são por tempo indeterminado e são todos para docência, sobretudo na Universidade de Lisboa, com 49 contratos, na Nova com 15 e na Universidade de Coimbra com 13 contratos. Verificamos também que poucas instituições optaram pela contratação de professores preferindo a contratação de investigadores, devido ao financiamento parcial da contratação FCT.

E como está o PREVPAP?

O Governo fez a coisa extraordinária de afastar das comissões de avaliação bipartida, o sindicato mais representativo do setor. Os dados atuais que temos dizem-nos que vai ser um logro e é aquele que vai originar mais problemas. A maior parte das candidaturas que foram feitas vão ser respondidas negativamente. Não se vai compreender qual é a igualdade de critérios, não foi tido um critério comum e portanto para docentes investigadores vai ser um logro. A precariedade vai continuar no setor e não se resolveu nada. Sabemos o que ali se passa e é uma vergonha. 

Porquê?

Há atraso com as atas, pela forma como são processadas as decisões e pelo próprio desconhecimento que algumas organizações sindicais têm daquilo que é a realidade do Superior. Assim era difícil correr bem. O ministro Manuel Heitor vai ser julgado pela História por aquilo que fizer nesta legislatura em relação ao combate à precariedade. O Governo cria as metas para si próprio e criou a meta de precariedade. Se não é resolvido no Superior, é fácil tirar as conclusões acerca do desempenho do ministro.

Quais são as instituições de ensino superior mais atrasadas neste processo?

A mais atrasada é sem dúvida a Universidade do Porto. Não houve nenhuma análise.

A manter este ritmo quando preveem que o PREVPAP venha a ficar concluído em todas as instituições?

Podemos terminar a legislatura ainda com concursos por abrir.

É o que vai acontecer?

Espero que não. Mas a este ritmo tão lento mas se continuar assim é o que vai acontecer.

Mas a lei não está a ser cumprida? 

Não está a ser cumprida. De forma nenhuma. Em relação ao PREVPAP, o ministério ignorou a questão dos critérios e da exclusão das carreiras especiais. Todos os pareceres sobre isso foram ignorados assim como os prazos para a implementação da lei.

Essas questões foram transmitidas ao ministro? 

Temos um ministro que não nos ouve e recusou várias vezes receber-nos. Na opinião pública afirma que a lei não é para ser cumprida, que os prazos são apenas indicativos. Falamos com quem quer falar. Falamos com os grupos parlamentares e aguardamos que o Presidente da República nos receba. Ele próprio é um académico e já tive oportunidade de informalmente trocar duas ou três impressões com o Presidente da República. Ficou a possibilidade de podermos conversar. Já recebeu os bolseiros, esperamos que em breve nos possa receber.

Os professores e investigadores têm vindo a mostrar sinais de descontentamento através de manifestos e de algumas vigílias. Vão endurecer o tom e organizar protestos? 

O Superior tem estado em convulsão e em protesto em toda esta legislatura. Existiram vários protestos a nível nacional que envolvem quer os docentes de carreira, quer aqueles que são precários. A contestação não se resume aos investigadores precários ou aos bolseiros. Os professores de carreira não estão contentes e também os investigadores de carreira não estão contentes. O descontentamento é generalizado. Mas o Ensino Superior tem uma característica: as pessoas são cumpridoras e são discretas. Não sentimos que a rua seja o espaço ideal para efetuar as reformas necessárias. Pretendemos reagir sim, dentro do quadro de direito e temo-lo procurado fazer.

Como? 

A Provedora de Justiça que se prepare porque vai ter muito trabalho com o Superior. Há aqui questões de igualdade e de desigualdade em relação aos critérios. O PREVPAP vai criar muitas dessas situações de desigualdade de critérios entre instituições. Na lei do emprego científico a mesma questão. Há aqui muito trabalho para fazer ainda dentro do quadro do Estado de Direito que é aquele onde queremos operar.

‘Fazemos milagres com muito, muito pouco’

As verbas que vão ser transferidas pelo Estado para o Ensino Superior já foram comunicadas pelo Governo. O presidente do SNESup, Gonçalo Velho, alerta que o reforço previsto é «francamente baixo» e que está muito longe dos 600 milhões de euros necessários para se chegar à média europeia de 1,9% de investimento público no Ensino Superior. As universidades têm infraestruturas e equipamentos a «decair» e é «um verdadeiro milagre» que Portugal consiga ocupar as atuais posições nos rankings internacionais.

Em entrevista ao SOL, o professor alerta ainda para a «confusão» instalada na progressão da carreira por falta de regras claras a aplicar no descongelamento. Em setembro há ainda 13 mil docentes que não progrediram e nem sabem quais as regras a que são sujeitos, diz Gonçalo Velho.

Já tiveram acesso aos números do Orçamento do Estado para 2019? 

De forma oficial não. Mas já conhecemos a proposta do Governo, que tem um acréscimo de 21 milhões de euros em relação ao orçamento anterior. É francamente baixo. Segundo os nossos cálculos, neste momento, para cumprir as necessidades do Ensino Superior são necessários, no mínimo, mais 200 milhões de euros. E para conseguirmos alcançar a média da Europa, que é uma das metas do Governo, precisávamos de mais 600 milhões de euros, para sermos competitivos a nível internacional. Um sinal de que o Governo queria cumprir com a meta seria aproximarmo-nos dos 200 milhões de euros mas o reforço que vai ser transferido é de 10% desse valor. É claramente insuficiente. 

Então, tal como os reitores e presidentes dos politécnicos também diz que falta muito dinheiro para cumprirem as leis em vigor... 

Não gostaria de colocar a questão nesses termos. Preferia colocar naquilo que é o financiamento adequado para o normal funcionamento das instituições de ensino superior. O que nós temos é que em relação à OCDE o nosso valor é 0,8% de despesa pública. E para atingirmos 1,5% são necessários mais 200 milhões de euros, para atingirmos 1,9% são necessários 600 milhões de euros. É este o quadro.

Onde há mais falta de verbas? 

Em tudo. Há falta de investimento nas infraestruturas, nos equipamentos e tudo isso está a decair. Temos também problemas naquilo que é a investigação e na falta de bibliografia disponível. Obviamente que isto nos penaliza na competitividade internacional. Se não tivermos os recursos materiais para fazer investigação vamos perder o comboio. É um verdadeiro milagre que nos rankings estejamos nas posições em que estamos. Se verificarmos a relação entre o financiamento e os rankings, seremos, sem dúvida, o país mais eficaz e mais competitivo a nível mundial. Fazemos verdadeiros milagres com muito, muito pouco.

Entre os professores de carreira também há descontentamento?

É menos visível mas, se calhar, é entre os professores de carreira onde há mais descontentamento. São pessoas que há muitos anos não se sentem valorizadas. Fomos sujeitos a uma avaliação de elevado escrutínio, de forma muito precisa, num processo altamente burocrático. E depois os resultados disso são completamente incipientes. Só no início do mês de agosto o ministro deu o seu entendimento do que seria a leitura da lei do descongelamento e progressão de carreiras.

E qual é?

O entendimento é restritivo, chegou tarde e vai aumentar o descontentamento dos docentes que já têm elevadas cargas horárias, que já têm alguma idade, lutam no dia a dia contra as degradações materiais e têm vindo a cumprir sempre os resultados das métricas científicas. Não é fácil. E o estatuto que Portugal tem hoje em dia na comunidade científica internacional é resultado destes docentes e destes investigadores. Mas os resultados na valorização financeira não são visíveis nos vencimentos. 

Tal como os professores do básico e secundário, também viram a carreira congelada durante nove anos, quatro meses e dois dias?

O congelamento afetou a todos mas os sistemas de avaliação e de retribuição são diferentes. Nós tínhamos um sistema de mérito implementado desde 2009. Há nove anos que estamos a ser avaliados com rigor. E em termos de vencimento vamos ser os mais prejudicados de toda a função pública. Nós nem vamos ver reconhecidos os nove anos.

Então?

Só vai ter progressão remuneratória quem num período de seis anos teve a menção máxima (excelente), sendo que o Governo quer restringir esse período apenas entre 2010 e 2015.

Ou seja, só vos quer reconhecer cinco anos?

Sim. E desses cinco anos temos de ter a produção de alcance máximo. Se não se alcançar o excelente na avaliação não se tem progressão remuneratória.

Há quotas para o excelente?

Algumas instituições aplicaram quotas e outras não. As que aplicaram quotas definiram a mesma que é para toda a função pública, que são 20% para o muito bom e 5% para o excelente. Isto significa que em cada instituição só há 5% de professores que podem progredir remuneratoriamente. E aqui há um problema.

Qual?

É que os dirigentes são avaliados automaticamente com excelente. Então em muitas instituições os dirigentes ocuparam imediatamente todas as quotas do excelente.

Pelo que diz não há uma regra geral. Quantos professores progrediram?

Na prática está instalada uma confusão. Há instituições que estão a aplicar dez pontos - três politécnicos (Porto, Guarda e Castelo Branco) - que é a regra geral da administração pública. Em relação às universidades a confusão é ainda maior. Estamos em setembro e ainda não se sabe muito bem como é que há de se fazer. Temos 14 mil docentes de carreira. Há mais de 13 mil a aguardar uma resposta. Até ao momento a progressão foi processada apenas para 568 docentes, dos quais 334 são do Politécnico do Porto, 108 em Castelo Branco e 67 na Guarda. Isto é um quadro de caos a que o ministro assobiou para o lado e não deu qualquer resposta.

Mas não houve proposta do ministro para as regras do descongelamento?

Durante imenso tempo os reitores e os presidentes dos politécnicos solicitaram o esclarecimento por escrito ao ministro. Em abril ou março, chegou a haver um parecer da secretaria-geral que o ministro nunca homologou. Até chegarmos a julho, quando o ministro no parlamento expressou aquilo que era o seu entendimento da lei. E fê-lo verbalmente. Até hoje não temos um documento por escrito e o ministro nunca reuniu connosco para discutir seja o que for acerca desta matéria. Para nós é simples, a lei é clara e é para cumprir. É a mesma que se aplica a todos os funcionários públicos: progride-se de escalão ao fim de dez pontos. 

Desde que ano não progridem na carreira?

Não progredimos desde 2004. Houve descongelamentos que por força daquilo que é a nossa legislação de carreira acabaram por nunca ser aplicados. Houve o descongelamento em 2010 e aí houve algumas instituições, poucas, que efetuaram as progressões aplicando as regras de toda a função pública. Ou seja, ao fim de dez pontos há progressão de escalão. Houve outras instituições que não o fizeram e neste momento continuam sem o fazer. 

‘Este é um ministro perdido e desgastado’

O presidente do Sindicato do Ensino Superior tece duras críticas ao desempenho governativo do ministro Manuel Heitor. Em entrevista ao SOL, Gonçalo Velho diz que o ministro significa «um conjunto de políticas que não foram implementadas». O dirigente sindical diz que universidades e politécnicos não têm respostas do ministro e que está instituída uma «anarquia libertária» no setor, que é «estranha» num Governo PS.

Há quanto não reúnem com o ministro?

Há mais de um ano que não reunimos com o ministro Manuel Heitor. Mas, se o ministro quiser continuar com essa postura não será por isso que deixamos de conseguir coisas para os docentes. Apenas revela aquilo que é a postura do ministro Manuel Heitor.  

O ministro foi professor do Superior até assumir funções governativas. Estavam à espera desta postura de distanciamento e deste desempenho governativo do ministro?  

O maior património político de qualquer  Governo é a confiança. Significa que quando digo que vai acontecer algo, isso se cumpre. O ministro precisa de ter a confiança e de ter capacidade de liderança que seja inspiradora para os professores. Tenho dúvidas que as tenha. Quando tenho dúvidas significa que nenhuma destas duas vertentes está a ser cumprida, significa que tenho desconfiança e que não tenho um líder que me esteja a inspirar. 

É esse o sentimento dos professores?  

É esse o sentimento que estamos a ter. Depois das primeiras reuniões com este ministro, todos depositaram nele a sua confiança e a sua expectativa. Agora, temos um ministro que parece ter instituído uma situação de anarquia e de auto-governo que nem se percebe muito bem qual é. Porque as instituições decidem e perguntam: decidimos como e com que dinheiro? E o ministro não responde. Portanto, temos aqui uma espécie de anarquia que é um pouco estranha. E uma anarquia libertária ainda é mais estranha num Governo do PS.

Mas acham que a falta de implementação das políticas é travão das Finanças ou é decisão do ministro?

Para grande parte dos agentes do Superior, a figura do ministro parece alguém algo perdido. Essa é a palavra que mais ouço de investigadores de diretores de centros de investigação, de reitores, de presidentes de politécnicos. Passa essa imagem de ministro perdido. Quando anunciou que queria flexibilizar o emprego científico, enganou-se completamente na legislatura e na realidade. Logo aí errou e logo aí começou a perder a confiança do sistema. E se um ministro não tem a confiança do sistema acho difícil que se implemente um programa político. Sem dúvida que enfrentou desafios da parte das Finanças, não colocamos isso de parte e podemos até verificar ‘in loco’ algumas dessas situações. Mas neste momento é um ministro desgastado, perdido.

Qual é a vossa expectativa para 2019? Vai ser um ano eleitoral…

No último ano de Governo do PSD houve um aumento da dotação do Orçamento de Estado do Superior em termos percentuais de despesa pública. Não é isso que acontece com este Governo. E estamos a arriscar fecharmos uma legislatura sem termos resolvido os problemas do Superior e de até termos mais problemas que foram surgindo. Isso significa um enorme desafio para a preparação da próxima legislatura. A nossa atenção está já na próxima legislatura.

E se o ministro continuar em funções na próxima legislatura?

Mais do que o ministro importam políticas. O ministro Manuel Heitor significa um conjunto de políticas que não foram implementadas. 

Ana Petronilho - Sol