“As pessoas ainda pensam que a sociedade de informação é brincadeira”

José Valença ajudou a ligar Portugal à Internet. Participou no envio do primeiro e-mail entre a Universidade do Minho e a Universidade de Manchester. Anos mais tarde, envolveu-se na criação do cartão do cidadão. Diz que tudo na sua vida foi um pretexto para estar mais perto da matemática.

Ainda escreve com canetas de tinta e até tem uma colecção. Diz que as escolhe de manhã como quem escolhe a roupa que vai usar durante o dia. Não gosta que lhe digam que é “antiquado” porque um homem tão “tecnológico” pode usar uma coisa que pouco gente utiliza. Também não dispensa o caderno onde escreve tudo o que faz. Neste dia, por exemplo, a manhã está reservada para esta entrevista com o PÚBLICO.

José Valença, professor há quase 40 anos na Escola de Engenharia da Universidade do Minho, jubilou-se em Outubro – nasceu em Moçambique e foi lá que se formou (e que teve o primeiro contacto com um computador, na altura o único do país) antes de seguir para um doutoramento em Oxford. Não gosta que lhe chamem “o co-criador” da Internet em Portugal, apesar de ter sido uma das primeiras pessoas em Portugal a funcionar com o que na altura era algo muito desconhecido e desvalorizado. Além disso, muitas outras coisas que hoje já consideramos banais tiveram a sua mão de alguma forma – o cartão do cidadão, a primeira homepage em Portugal, o voto electrónico.

Disse-me antes de começarmos esta conversa que tudo o que tem feito na vida em termos profissionais é um pretexto. Porquê?
Fui mudando de interesses, apesar de me ter formado em energia electrotécnica. Passei pelas telecomunicações, pela propagação. Achei isto particularmente relevante já quando me perguntaram isso na cerimónia de jubilação, porque tudo o que tenho feito ao longo da vida é, de certa maneira, um pretexto. Realmente, o que me acompanhou toda a minha vida foi a matemática. Tudo o que fosse matematicamente relevante fez com que eu mudasse de direcção.

E porquê a matemática?
O que mais gosto na matemática é que esta não é uma ciência, porque as ciências têm um objecto de estudo – e isto já perturbou algumas pessoas quando o disse antes. A física tem um objecto, a química tem outro, a geologia tem outro, até as ciências jurídicas e a sociologia têm. E a matemática não. O que é que a matemática estuda? Não estuda nada, é uma linguagem e com ela nós podemos dizer verdades ou mentiras. Uma das coisas mais estúpidas que eu ouvi dizer foi que se isto está em números é porque é verdade.

Nem sempre…
Nem sempre não, quase nunca. Serve para dizer verdades e mentiras e as coisas mais prosaicas, ou mesmo poesia, e portanto a matemática serve para tudo e é uma cultura e como é uma cultura nós estamos embebidos nela. E esta é a minha desculpa. Na minha vida académica fui fazendo várias coisas, comecei pelas telecomunicações e em Oxford puseram-me outros problemas: quando lá cheguei o que estava mesmo na moda era o aeroespacial, tudo o que fosse espaço era muito sexy, então robôs no espaço, era a melhor coisa. Até estive envolvido em alguns processos espaciais, num antepassado do Hubble, o telescópio orbital, mas esse projecto da Agência Espacial Europeia nunca saiu do papel. Aquilo que me interessava mesmo era a matemática que estava por detrás de tudo. Então, acabei por me desiludir.

E a famosa primeira ligação à Internet?
O processo começou ao tentarmos criar um corpo científico à volta das tecnologias da informação. Tivemos muitas fragmentações à volta deste tema para perceber se isto era ciência ou não era ciência. Eu era director do centro de informática e nós conseguimos arranjar um computador para cá. Demorei seis anos em negociações, mas consegui.

Depois, algures nos anos 80, havia uma ideia de criar uma sociedade de matemática europeia e isso foi muito difícil porque estamos a falar no período imediatamente anterior à queda do muro de Berlim. Era uma sociedade que cobrisse todos os matemáticos europeus, incluindo os países de Leste. As dificuldades eram enormes porque tinha de haver dinheiro europeu para suporte dos matemáticos que viviam em condições que hoje nem conseguimos imaginar.

Cheguei a ir visitar um colega em Praga nessa altura e ele tinha como ambiente de trabalho um canto de uma mesa, nem computador, só papel e lápis. Participei na instalação de um serviço de Internet entre Viena e Berlim através do qual as comunidades do outro lado do muro tiveram acesso pela primeira vez à Internet, isto em 1987. Gosto de dizer que fiz o meu furinho pessoal no muro.

Mas isso já foi depois da primeira ligação em Portugal… 
Sim. Isso aconteceu em 1985, numas instalações junto da Igreja de Santa Cruz e do antigo Hospital de São Marcos, mesmo no centro de Braga. Aí perto há um edifício muito estreito que tem uma estátua à porta com umas asas, é o edifício do pé alado e foi aí que durante uns anos nós estivemos instalados porque estas instalações actuais ainda não existiam.

Dentro do departamento de informática existia um grupo de telecomunicações que era chefiado pelo professor Vasco Freitas. Ele tinha estado em Manchester [Reino Unido] e foi através dessa estadia que nós iniciámos o processo de fazer a primeira ligação física entre esse mesmo edifício em Braga e Manchester. Durante uns meses largos, toda a comunicação era feita através dessa ligação. Aliás, ainda mantemos aqui uma ligação até ao nó principal de Internet em Lisboa.

Foi uma euforia?
Sim, foi, mas, se reparar bem, isto era um departamento que estava a crescer e que estava sempre a criar projectos e este era um de muitos. Na altura, o objectivo não era criar uma rede social ou ter um impacto social com uma coisa tão pequena.

A Internet nasceu em 1969 e naquela altura chamava-se Arpanet e era financiada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Aquilo funcionava como forma de aglomerar vários projectos das várias universidades, ninguém estava a pensar em criar um movimento social, surgiu de coisas práticas, e aqui foi o mesmo. Estas eram redes privadas, a rede universal só aconteceu quando a Arpanet se autonomizou do Departamento de Defesa e foi nessa altura que os protocolos da Arpanet passaram a ser os protocolos desta rede internacional.

Nós no fundo não tínhamos grande consistência do papel social que esta ligação ia ter e só começámos a perceber em 1992, quando foi conhecido o protocolo HTTP. Em 1993 já tínhamos um sistema a funcionar com a primeira página WWW [World Wide Web] em Portugal.

Em 1995, o secretário de Estado do Ensino Superior da altura organizou um encontro para se pensar a investigação científica, e eu já tinha um esta carta na manga, já sabia que havia um valor social na WWW e tentei mostrar isso, mas ninguém me ligou patavina. Nesse dia fizemos um snapshot [imagem instantânea] da Internet da altura, das páginas que já existiam, para mostrar às pessoas. O PÚBLICO era um dos poucos que já tinham websiteEu até tentei que o departamento de comunicação da Universidade do Minho, que estava preocupado em aprender a usar gravadores, criasse um jornal na rede, mas eles na altura disseram “Não, isso não vai dar em nada”.

Mas não foi bem recebido e a Internet continuou a ser algo restrito?
Sim, a WWW era algo de interesse muito restrito, havia muito pouca gente que tinha a perspectiva que aquilo teria um impacto forte nas relações sociais, humanas e económicas. É engraçado como as coisas surgem: ontem li que o objectivo do Tim [Berners-Lee] em criar o link era diminuir as toneladas de papel que existiam no CERN. É que depois os documentos referiam-se uns aos outros, relacionavam-se entre eles, e para isso ele inventou o link. Essa coisa de estar a ler e passar facilmente para outra coisa foi criada como forma de organizar a documentação técnica, mais nada, e tornou-se o que hoje conhecemos.

Vemos que as coisas não foram criadas para o fim que acabam por ter, nem o HTTP, nem a WWW, nem o Facebook. Estas tecnologias adquiriram uma dimensão social que ultrapassa em muito os seus objectivos iniciais. Nós hoje damos uma importância às coisas, mas na altura elas não tinham essa dimensão.

O que é que existia nessa primeira página criada em Portugal?
O primeiro endereço tinha apenas um mapa de Portugal com alguns pontinhos que significavam os locais onde já existiam páginas da altura, uma espécie de agregador de sites. O primeiro sistema de agregação das páginas portuguesas foi o SAPO. Quer dizer Serviço de Apontadores Portugueses Online e foi criado em 1995 na Universidade de Aveiro. Durante a noite, este serviço fazia a agregação de páginas portuguesas, e se na altura elas eram poucas, hoje isso seria feito através de um algoritmo.

O cartão de cidadão que hoje usamos também tem mão sua...
Digamos que sim. Em 95 comecei a ficar inquieto e mudei outra vez de área, passei para a criptografia e nesse âmbito participei no cartão de cidadão, no projecto Galileu, no sistema de votação electrónica.

Mas voltemos ao cartão de cidadão…
No tempo do Governo do Guterres, havia um secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, o José Magalhães, que era conhecido como o “ciberdeputado”. Muitas das coisas que conhecemos hoje na administração pública têm a mão dele. Ele chefiou um grupo de trabalho por causa do cartão e eu fui para lá como técnico. Eles tinham uma ideia que era criar o cartão único. Na altura existia o bilhete de identidade, o cartão de voto, e muitos mais. Foi com a ajuda do Zé Magalhães, e com a minha inspiração talvez, que fizemos a versão inicial.

Batalhámos por não ter um cartão da administração pública no bolso do cidadão, queríamos ter o cartão do cidadão e aqui as palavras “do cidadão” são muito importantes. O cartão foi todo desenhado nesta perspectiva de ser algo que o cidadão controlasse. Uma das ideias era que o cidadão pudesse escolher os conteúdos que lá estão de uma forma devidamente segura. E isto é uma coisa que ainda defendo.

E o que faltava nesse cartão de cidadão ideal?
Aquilo que falta e que podia ser eventualmente mudado era esta capacidade de o cidadão intervir nos conteúdos. Por exemplo, há certas actividades profissionais que podiam ter a sua profissão no cartão. 

Na altura de discussão toda a gente tinha bons argumentos. Por exemplo, a saúde dizia “devemos pôr o tipo sanguíneo e dados sobre alergias”, mas depois outro dizia que outro dado também era importante e era tudo uma salgalhada. Não havia nenhuma razão para a carta de condução também lá estar. A questão importante aqui é que era o próprio que escolhia, não era nenhum órgão do Estado.

Lembro-me que aqui há uns anos quando o Bloco de Esquerda teve um ataque de febre e resolveu que “o cidadão” era machista e queriam mudar o nome para Cartão de Cidadania e eu fiquei muito aborrecido, dito de uma forma moderada.

Mas nessa proposta do BE não mudava nada no cartão, era apenas uma questão de formulação.
Mudava o conceito. As pessoas não se apercebem que a palavra “cidadão” no cartão tem uma nuance muito forte. E isto era na minha opinião sobre o cartão porque acho que dentro de todas as privacidades esta é a mais importante, que é a questão da identidade própria, e isto ainda é mais fulcral nesta era que vivemos em que a privacidade nos passa ao lado.

Ainda não estamos conscientes do problema da privacidade?
Não, não estamos. No geral, as pessoas ainda pensam que a sociedade de informação é brincadeira, que nós podemos de alguma maneira sair fora, não vêem que isso é parte integrante da vida de toda a gente neste momento.

Entrevista - Sofia Neves  - 3 de Dezembro de 2019, Público