Antigo secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros propõe que os ministérios passem a estar pré-definidos em lei e que os governos se organizem como cúpula deles, mas sem os desestruturar.

No ensaio No centro do poder – Governo e Administração Pública em Portugal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, José Maria Sousa Rego, que foi secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros de 2002 a 2016, faz um diagnóstico ácido sobre a forma como os sucessivos governos se articulam com a administração e propõe cinco medidas para melhorar o funcionamento do Estado.

Olho para si e não é difícil imaginá-lo no papel de Sir Humphrey Appleby, o secretário permanente do ministro da série britânica Yes, Minister, que dizia a tudo que sim, mas… Também teve de dizer muitas vezes “sim, mas” aos sucessivos governantes com quem trabalhou?
Essa série chamou a atenção para o corporativismo da administração que acabava por se impor às políticas e aos membros do Governo. Em Portugal, as coisas passam-se ao contrário. A administração pública está desarticulada e os dirigentes da administração não têm nem condições para desenvolver correctamente as suas responsabilidades e atribuições de lei, quanto mais para se atreverem a criar obstáculos às decisões dos ministros.

Aquela série coloca em evidência a relação difícil entre o topo da administração pública e os membros dos governos, que vêm sempre com os seus programas, trazem pessoal da sua confiança e muitas vezes um grande desconhecimento sobre os procedimentos - e depois têm de trabalhar com uma estrutura imensa, burocratizada e carreirista. Esta imagem ainda é real no Portugal do século XXI?
Os problemas são os mesmos e é por isso que essa série é tão pertinente. Os cidadãos criticam a administração porque ela é lenta, os governos criticam-na porque ela não é ágil nem competente. E a própria administração critica porque não tem condições para desenvolver a sua própria actividade. A administração é, de facto, uma actividade crítica. O exercício do poder executivo faz-se através de actividades que são político-administrativas. Uma orientação política tem de ser configurada através de uma programação de uma política pública. E isso é um misto de actividade política e administrativa que deve ser feita por equipas mistas, de pessoal do governo e dos gabinetes, e de pessoal da administração, que têm origens diferentes, estatutos diferentes mas que se devem respeitar mutuamente. E por ser esse misto é que é crítico o equilíbrio.

E o senhor critica com veemência a contratação de demasiado pessoal político para os gabinetes governamentais a cada mudança de executivo. Que entropias se criam com esta rotatividade?
A principal entropia é a intermitência das políticas públicas e a captura, ou a tentativa de captura da administração pelos partidos políticos. Quando se verifica que o Governo, que é o órgão superior da administração, se rodeia de uma quantidade de pessoas muito grande – eu avalio em 450 o número de pessoas com graduação superior que trabalha com a administração –, isso altera a relação com a administração. A tendência que se tem vindo a impor é os governos executarem eles as funções todas, dispensando a administração ou remetendo-a para actividades logísticas de menor importância. E quando chega um novo Governo, pergunta à administração o que é que se passava e a administração não sabe, não tocou na bola.

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Mas não é suposto a governação ser partidária, com programas escolhidos em sufrágios, aos quais se deve submeter o aparelho do Estado? Há algum limite para a interferência do Governo na administração?
O limite que procura e que faz todo o sentido é a natureza, as regras de funcionamento com a administração pública. A Constituição diz que o Governo é o órgão superior da administração, mas isso não significa que o executivo invada a própria administração ou que desempenhe regularmente poderes que estão atribuídos especificamente à administração. Excepcionalmente, pode sempre fazê-lo. Mas quando se torna regular não. A captura da administração pelo pessoal político que apoia o Governo – a acusação da partidarização da administração pública – esse é o limite que não devemos ultrapassar. Em Portugal, com esta viciação do sistema, deixou de se valorizar o serviço público, perverteram-se valores de serviço público como a neutralidade e a isenção.

A lei prevê que os mandatos dos altos cargos da administração sejam de cinco anos e os dos governos de quatro. Mas, como diz, o sistema está viciado e à alternância política acaba por corresponder a uma alternância administrativa indesejável. Como evitar isto?
Eu proponho que quem aceite exercer um cargo superior na administração pública deve suspender a sua actividade partidária - não a filiação partidária. Qualquer membro do governo tem dificuldade em lidar com um alto funcionário que milita num partido que lhe está a fazer oposição. Quem aceita um cargo na administração para trabalhar com qualquer governo tem de ser neutro, isento e profissionalmente competente para aplicar as políticas públicas que sejam definidas por um governo legítimo. Esta medida é uma correcção ao sistema existente que considero decisiva para reequilibrar o sistema e o tornar transparente.

Já não é o primeiro a dizer que os ministérios funcionam em silos, praticamente sem articulação entre si. Também é por isso que propõe um órgão de chefia, individual ou colectivo, que assegure a continuidade em mandatos desencontrados?
Sim, tem de haver uma pessoa ou órgão que seja institucionalmente capaz de tomar posições relativamente ao que se passa na administração nas tais actividades político-administrativas.

Esse papel coordenador poderia caber à secretaria-geral do Conselho de Ministros?
Pode e deve: o secretário-geral do Conselho de Ministros tem condições para exercer essa chefia, individual ou colegialmente com os outros secretários-gerais. Teria a vantagem de não deixar nas Finanças a responsabilidade sobre a administração pública. Hoje, o membro do Governo que trata da Administração está nas Finanças, devido ao peso da despesa na orientação política dos governos. Mas isso vicia a visão sobre os problemas.

Propõe também que se defina na lei um determinado conjunto de ministérios, com um aparelho administrativo estável. Isso não seria submeter os governos ao modelo da administração?
A proposta é estabilizar a organização da administração, distinguindo-a do que é governo. A administração tem de ter alguma estabilidade e os governos, ao entrarem em funções, arrumam as dependências da administração consoante entendam, porque isso é uma competência dos executivos. O que proponho é que a Assembleia da República defina uma organização estável da administração que permita aos governos arrumá-la para efeitos de orientação governativa, mas assegure que a cada mexida num governo não sejam apagados ou criados ministérios. Porque é completamente impossível trabalhar numa organização que, ao ritmo das alterações dos membros do Governo, altera as suas competências, as suas atribuições e a sua organização.

 Acha que algum partido votaria a favor de uma alteração neste sentido?
Não só acho possível como é obrigatório. Sempre houve ministros sem o seu ministério – ministros de Estado, ministros-adjuntos - e tudo se passa sem crise. Neste Governo, há ministérios que prestam serviços a vários ministros. A PCM, por exemplo, presta serviços ao primeiro-ministro, à ministra da Presidência e ao ministro-adjunto, e também ao ministro das Infra-estruturas e Planeamento e ao ministro da Cultura. O que eu defendo é que o Parlamento estabilize uma organização dos ministérios que permita desenvolver centros de competências e que os governos possam, depois, definir as dependências relativamente aos membros do Governo consoante a sua própria orgânica. Em vez de um Governo definir os ministérios a partir da organização definida em cada mandato, o Governo pode ter toda a flexibilidade para se organizar como entender e a administração manter estabilidade nos ministérios como centros de competência. Basta depois definir as ligações de direcção, de superintendência e de tutela. Todos ganharemos em ter uma administração competente, estável, que responda de forma isenta e profissional às novas orientações dos governos.

Outra medida que propõe é a adopção de um eficaz sistema de avaliação das políticas públicas. Não existe ainda, ou não é eficaz?
A avaliação que interessa é uma avaliação pública independente que possa ser apresentada ao cidadão e que legitime a sua opinião e lhe permita escolher eleitoralmente se quer seguir por um certo caminho ou escolher outro. Esta avaliação não tem sido feita.

Seria um Governo reconhecer que falhou…
Não, não, não. Há políticas públicas que têm tido muito bons resultados, mas a mudança da conjuntura pode levar as pessoas a preferirem ir por outro caminho. O que se verifica hoje é que os cidadãos, não dispondo de avaliações independentes, acabam por seguir as orientações partidárias. Tem de haver avaliações que permita tirar conclusões sobre o que correu bem e menos bem e dos resultados. O que não deve acontecer é que sejam lançadas políticas públicas sem se conhecer a avaliação das políticas anteriores.

Há uma política pública – o Simplex – que foi muito bem avaliada internacionalmente, mas foi abandonada pelo Governo seguinte. Como é que a administração reagiu no início às mudanças que o Simplex veio a impor ao próprio aparelho administrativo? E quando foi retomado, houve melhor receptividade?
A receptividade da administração é a mesma. O Simplex é das politicas públicas mais bem conseguidas e que teve o reconhecimento internacional da OCDE, que o recomendou a outros países. A intermitência é que provocou o “apagão” do Simplex durante esses anos. Curioso é que não houve nenhuma orientação para fazer o apagão, pelo contrário. Eu até conto, no livro, que fui chamado para dizer o que sabia porque foi dado conta, no Governo PSD/CDS, que tinha desaparecido o impulso do Simplex e foi-me perguntado o que é que eu sabia e pensava sobre isso. Eu verificava o apagão, mas tinha poucos ou nenhuns conhecimentos do que estava a correr, porque as coisas se passavam excessivamente no âmbito de um membro do Governo. A administração verifica que há um apagão, mas não tem meios para lhe mexer. Este Governo, e bem, repegou no programa, manteve e promoveu a marca, a administração está a colaborar, mas, se não se corrigirem os erros estruturais, preparem-se para um novo apagão até ao Simplex 3.

Reconhece que, hoje, a administração pública faz parte do problema, mas pode e deve fazer parte da solução. O que é preciso para fazer esta reforma?
Hoje não há quem puxe pelo sentido profissional, pelo reconhecimento do mérito, pela iniciativa, pela competência profissional. Daí que eu defenda uma estabilização da organização, uma chefia e vestir a camisola. Mas a administração também precisa que os cidadãos exijam mexidas concretas no sistema. Aqui estão as cinco medidas que eu proponho: zero políticas novas sem avaliação das anteriores, boas contas na administração pública, metas de médio prazo na educação, na saúde, na justiça, nas finanças, a suspensão da actividade partidária por quem desempenhe funções de direcção superior e uma reforma do Estado, que não apenas uma modernização, mas uma correcção do sistema no exercício do poder executivo.

LEONETE BOTELHO

8 de Julho de 2018, Público