Comissão Nacional de Protecção de Dados  Propostas de lei sobre videovigilância não cumprem regulamento de protecção de dados

Comissão de Protecção de Dados diz que a finalidade e legitimidade do tratamento dos dados são deixadas em aberto. MAI defende que as imagens já são gravadas por um operador privado e que, por isso, não há violação do direito à privacidade.

As novas regras sobre videovigilância em locais públicos — bancos, farmácias, bombas de gasolina, discotecas e bares, por exemplo — pecam por “indefinição e imprevisibilidade”. E uma vez que não detalham aspectos como a finalidade do tratamento dos dados nem clarificam as condições ou razões de acesso às imagens (que as polícias vão poder visualizar em tempo real) não obedecem às regras estabelecidas pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD).

Quem o diz é a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD). As críticas surgem em dois pareceres publicados a 13 de Novembro. Um relacionado com a proposta de lei sobre a actividade de segurança privada e autoprotecção — em consulta pública até 26 de Novembro — e outro sobre a proposta que estabelece o regime jurídico dos sistemas de segurança privada em discotecas e bares. Ambas pressupõem o acesso pelas polícias às imagens captadas em tempo real.

Quanto à primeira proposta, que prevê a obrigatoriedade de todas estas as entidades terem um sistema de videovigilância, a CNPD diz que as regras não estão “sustentadas em qualquer objectivo determinado e específico”. Além disso, há “uma grande margem de discricionariedade quanto às condições de acesso e à posterior utilização das imagens”, o que coloca em causa a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Há dúvidas quanto à finalidade do tratamento e aos limites que se impõem. “Não se entende”, por exemplo, se o acesso às imagens está dependente da existência de um alarme prévio e o que o espoleta; se ocorre a todo o momento; ou se as forças de segurança podem gravar as imagens recebidas. Também não há precisão sobre o grau de divisão territorial que permitirá avaliar qual a força de segurança que acederá às imagens.

Outra crítica: “A proposta não dá nenhum passo no sentido de garantir que as imagens captadas e conservadas pelos sistemas de videovigilância têm a qualidade e integridade necessárias para serem usadas como prova.” Neste ponto, a CNPD sugere ferramentas que as protejam de qualquer manipulação de data e hora e registos que permitam rastrear qualquer operação ou acesso às mesmas. 

Em suma, “o texto suscita um conjunto de questões muito sérias, com grande impacto na privacidade dos cidadãos”.

Ao PÚBLICO, Clara Guerra, porta-voz da CNPD, referindo-se ao acesso dos polícias às imagens captadas dentro de estabelecimentos em tempo real, é taxativa: “Não conhecemos nenhum sistema na Europa em que isto aconteça.”

Videovigilância é “extremamente intrusiva”

No caso do segundo parecer, que incide sobre a proposta relacionada com a videovigilância nos bares e discotecas, a CNPD repete as críticas. E apesar de neste caso se referirem os “fins de prevenção criminal” e a "gestão de meios em caso de incidente" como razão para aceder às imagens, isso não é um “objectivo suficientemente explícito e determinado”, diz a comissão.

Mais grave ainda, é que estes sistemas vão funcionar no “contexto do convívio pessoal, de lazer e descontracção”. Se esta proposta for aprovada, então todo o interior (à excepção das casas de banho) de bares e discotecas ficará sujeitos à gravação de imagens, bem como toda a zona exterior. A CNPD vê esta opção como “extremamente intrusiva da privacidade e violadora dos direitos e liberdades das pessoas”.

A intenção de dar às polícias o acesso à videovigilância em bares e discotecas e outros espaços de uso público, em tempo real, já tinha sido defendida por Isabel Oneto, numa entrevista ao PÚBLICO, em 2017. Na altura, a secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, relativizava a questão. “Se quisermos falar de privacidade, as pessoas já estão a ser gravadas. A questão coloca-se entre a legitimidade do privado e a legitimidade do público. Sendo que compete às forças de segurança garantir a segurança daquelas pessoas.”

Em resposta ao PÚBLICO, o Ministério da Administração Interna mantém a linha de pensamento. "O que as propostas de lei pretendem é, tão só, permitir que, em caso de necessidade as forças de segurança apenas possam ter acesso às imagens que já estão a ser captadas e gravadas pelo operador privado". O ministério defende que "não há qualquer posterior violação de um direito de privacidade". Os casos de necessidade são, "por exemplo, perigo concreto para a vida ou integridade física, em que importa às forças de segurança avaliar os meios a destacar para o local".

Rita Marques Costa - 15 de Novembro de 2018, Público