Como pode desenvolver-se uma carreira científica em Portugal?

Discussão sobre a carreira científica no país traçou um retrato numa conferência em Lisboa, evidenciando como a comunidade científica está a ficar envelhecida e os doutorados a sair para o estrangeiro

Durante quase cinco horas, cientistas e directores de departamentos de universidades e institutos de investigação portugueses juntaram-se para responder a uma questão: como desenvolver as carreiras científicas em Portugal? No final da conferência – na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) durante toda a tarde desta segunda-feira, com a participação de 100 pessoas – saiu um diagnóstico: confirmou-se que há um envelhecimento e monopólio dos doutorados no ensino superior e questionou-se se deve existir uma única carreira ou uma carreira de investigador e outra de docente. Como resultado desta conferência, vai elaborar-se uma lista de recomendações para melhorar o sistema científico português, que será enviada para o Governo e para a Assembleia da República.

No início, Margarida Amaral (directora do Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas e uma das organizadoras da conferência) mostrou um esquema (com vários degraus) que começava com o candidato a investigador e terminava no chefe de um grupo. Ou seja, mostrou como deveria ser uma carreira científica, o tema da segunda de uma série de conferências sobre o sistema científico português. Depois, Margarida Amaral apresentou uma ilustração para falar da situação de Portugal, que designou como um “mar de incerteza”. Viam-se várias ilhas – representavam o doutoramento ou o pós-doutoramento – e havia uma cascata que levaria os canoístas (investigadores) ao desemprego.

A primeira conferência, a 30 de Outubro, foi sobre financiamento. A terceira será sobre a simplificação de procedimentos para tornar a ciência melhor e mais transparente (em princípio a 4 de Março); e a quarta centrar-se-á sobre garantias de previsibilidade e sustentabilidade do sistema científico (em data a anunciar).

Esta série de debates surge no seguimento do Manifesto Ciência 2018, lançado por vários cientistas em Maio de 2018. “Achámos que estava na altura de levantar a voz porque o sistema está absolutamente caótico”, nota ao PÚBLICO Margarida Amaral.

No debate desta segunda-feira, Ana Ramos (do Gabinete de Estudos e Estratégia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ou FCT) apresentou números sobre os doutorados em Portugal. Segundo os dados do Inquérito aos Doutorados, da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, em 2015 havia 30.807 doutorados residentes no país. Desses, 93% estavam empregados (28.609), 4% (1228) desempregados e 3% (970) inactivos.

A entrevista que há dias o ministro da Ciência, Manuel Heitor, deu ao PÚBLICO – e que causou indignação ao dizer que há “pleno emprego” entre os doutorados – também não ficou de fora. Perguntaram a Ana Ramos se os números do emprego científico seriam os mesmos se se olhasse apenas para os doutorados mais novos – ou seja, se aí o desemprego não seria maior – e como é que se garantiu que quem não estava ligado a uma instituição respondeu ao Inquérito aos Doutorados

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Ana Ramos disse que, nesse momento, não tinha respostas concretas. E acrescentou que o Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional de 2017 mostrava que havia 35.322 doutorados e que 92% trabalhavam no ensino superior. Em países como a Holanda e a Bélgica, para além do ensino superior, os doutorados estão mais distribuídos entre o sector do Estado e das empresas. Quanto às idades dos docentes e investigadores no ensino superior português, 54% (12.379) têm mais de 50 anos e 13% (2858) menos de 40 anos.

Exportação de doutores

Do Porto veio ainda para a discussão Cláudio Sunkel, um dos directores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde. Avisou que iria ser um “bocado duro” e considerou que em Portugal há uma “percepção errada” sobre o sistema científico nacional. Para o investigador, o sistema científico deveria estar separado das próprias universidades, como acontece em Inglaterra.

Portanto, enquanto Cláudio Sunkel defendeu esta separação, outros, no entanto, advogaram a fusão entre as duas carreiras (de docente e investigador).

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Mas para Cláudio Sunkel há um problema de fundo: “Portugal ainda não decidiu se quer ou não ter um sistema científico nacional.” Se o país quiser ter uma sociedade baseada no conhecimento – uma vez que não tem recursos naturais extensos –, terá de ir buscar uma “fatia” maior de financiamento ao Orçamento do Estado.

E deixou ainda um alerta: “Estamos a exportar capital humano altamente qualificado e não estamos a recebê-lo de volta.” Segundo o cientista, Portugal forma cerca de três mil doutorados por ano, mas a partir de 2008 a incorporação de investigadores no sistema científico parou. “A quantidade de doutorados portugueses lá fora é imensa. Isso preocupa-me porque quer dizer que não só os docentes universitários estão a ficar velhos como também os quadros de investigação”, referiu.

Também Carlos Salema, do Instituto de Telecomunicações, se mostrou preocupado com aexportação de doutorados”. “Nos últimos cinco anos, no Instituto de Telecomunicações doutoraram-se mais de 250 pessoas, dessas 44% estão na indústria e, destes, 44% estão na indústria estrangeira”, frisou.

“Daqui surgiram algumas ideias para se estabelecerem alicerces e se reformularem as actuais carreiras científicas”, notou Margarida Amaral depois do debate.“Fizemos um diagnóstico da situação e isso é importante porque temos sempre de ter dados fiáveis sobre a evolução da situação”, acrescentou Karin Wall, directora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e também organizadora da conferência. “A questão não é só se as pessoas têm um contrato de bolseiro e passaram a ter um contrato a termo: é o facto de terem uma carreira de dez ou 15 anos e ela ser fiável. É uma questão de estarem à vontade para continuar o trabalho que estão a fazer.”

Uma constatação final: havia poucos jovens na plateia. Ao que Karin Wall assinalou: “Temos de integrar os jovens e de saber integrá-los melhor. Enquanto comunidade científica, a nossa geração não foi capaz de os integrar no debate e de os confrontar com os problemas da política científica. Temos de criar diálogo entre todos os actores.”

As intervenções (de todas as conferências) vão ser compiladas e reunidas numa lista de recomendações, que será entregue ao ministro da Ciência, ao presidente da FCT e aos deputados. Entre o final de Junho e início de Julho, o resultado deste debate será divulgado numa última conferência no Porto.

Teresa Sofia Serafim - 6 de Fevereiro de 2019, Público