O estado da Administração Pública - Envelhecimento na função pública é transversal e tende a piorar. “Faz perigar o Estado social”

Há concursos que não abrem há décadas e outros que, abrindo, não vêem as vagas preenchidas. Sem tornar as carreiras mais atractivas será difícil inverter a situação.

a chegada do Verão agudiza-se o drama das conservatórias do país. A viver uma brutal falta de funcionários (sobretudo conservadores e oficiais de registos), há várias que correm o risco de ter de encerrar portas porque os poucos que existem vão de férias e não há quem os substitua. Acentua-se também o “bailinho das cadeiras” da mobilidade interna. “Pede-se funcionários emprestados por um bocadinho, para aguentar”, diz Margarida Martins, da Associação Sindical dos Conservadores dos Registos, desfiando o nome de alguns locais que arriscam ver interrompidos estes serviços nos próximos tempos: Vila Flor, Góis, Pampilhosa da Serra… O envelhecimento dos funcionários, um problema transversal a toda a função pública, associado à não abertura de concursos externos para a sua substituição, é a principal razão.

Um dos casos mais graves aconteceu na ilha do Corvo, onde, entre 2017 e 2018, a conservatória esteve encerrada por falta de funcionários. Arménio Maximino, do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado (STRN) diz que foram “seis meses” em que não era possível tratar de qualquer registo, fazer um divórcio, a regulação do poder parental ou um casamento. Basta olhar para o balanço social do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), referente a 2020, para perceber que a situação é quase insustentável: havia, nessa altura, 1719 postos de trabalho previstos e não ocupados.

O grupo dos oficiais dos registos correspondia ao que mais sofria com a falta de pessoal (faltavam 1187 pessoas nos serviços), seguido dos conservadores (237 em falta). Segundo o STRN, que fez o seu próprio estudo, incluindo já dados de 2021, a situação agravou-se, tendo saído 2005 profissionais dos serviços, desde 2001 (incluindo 1722 oficiais de registo). O sindicato contabiliza ainda que existem 1756 conservadores e oficiais em falta nos serviços, para um quadro de pessoal que deveria ter, para estar completo, 5676 pessoas. Ou seja, estão em falta quase 31% dos profissionais necessários.

Já temos todas as áreas de governação do país com uma média etária acima dos 50 anos, algumas a atirar para os 52 anos de idade média. Isto é um fenómeno completamente inédito no nosso país

César Madureira, investigador

O balanço social do IRN diz ainda que, em 2020, 40% das saídas foram causadas pela aposentação, sendo que entre oficiais e conservadores não havia qualquer trabalhador com menos de 40 anos. “Os trabalhadores da administração pública têm umas faixas etárias assustadoras. Cerca de dois terços já têm mais de 55 anos”, avisa Sebastião Santana, da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública.

Os últimos dados oficiais sobre o envelhecimento nesta área estão no Boletim Estatístico do Emprego Público da DGAEP – Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, de Junho do ano passado e dizem respeito ao ano de 2020. Segundo esse documento, a idade média dos trabalhadores da administração pública era de quase 48 anos (muito superior à idade média do total da população activa, que não chegava aos 44 anos), tendo aumentado mais de quatro anos em comparação com 2011. E se se retirarem destas contas os funcionários das forças armadas e de segurança, onde a idade tende a ser menor, a média subia para os 48,7 anos. Olhando para as diferentes áreas de serviço, os oficiais de registos, com uma média etária de 55,3 anos, era a carreira mais envelhecida de todas. A situação terá, entretanto, piorado.

“Já temos todas as áreas de governação do país com uma média etária acima dos 50 anos, algumas a atirar para os 52 anos de idade média. Isto é um fenómeno completamente inédito no nosso país”, diz o investigador César Madureira, do ISCTE. Em 2014 foi ele o responsável pelo estudo do DGAEP intitulado Envelhecimento demográfico na administração pública - Uma abordagem prospectiva, que olhou para a evolução desse envelhecimento entre 1996 e 2013.

Entre as conclusões indicava-se que dos 137.440 trabalhadores que existiam nas carreiras gerais em 2013, já só restassem “51.687, ou seja, 37,6% do efectivo actual” em 2033. “O somatório das saídas ao longo deste intervalo é de 85.753 trabalhadores”, lê-se no documento que dizia ainda que entre as carreiras mais afectadas pelo decréscimo de funcionários causado pelo envelhecimento estavam os assistentes operacionais (que perderiam 70,8% do efectivo em 20 anos) e os assistentes técnicos (com uma diminuição de 63,6%).

A análise não olhava apenas para o horizonte de 2033, estimando-se, por exemplo, que a quebra de assistentes operacionais, causada por aposentações, seria de 11,6% em 2018 e de 21,8% em 2023. Por 2018 ser o primeiro ano tratado nesta análise prospectiva, recomendava-se expressamente que se procedesse, nessa altura, “a uma comparação entre os dados reais e aqueles que foram previstos”. Mas tal não aconteceu, confirma César Madureira. “Não chegou a ser feito e não tem havido demonstração de grande interesse do poder político de o voltar a fazer. O que verificamos, se se tiver um olhar comparativo de ano para o ano, é que o envelhecimento nas diferentes áreas de governação é avassalador”. E isto, avisa, “faz perigar uma série de coisas”. Nomeadamente, “faz perigar o Estado social”, diz.

Quase 40% dos professores perto da reforma

Um dos casos que mais tem sido falado, em relação ao envelhecimento, é o dos professores. Um estudo da Nova SBE, encomendado pelo Ministério da Educação e divulgado em Novembro do ano passado, indicava que até 2030 pelo menos 39% dos professores em funções no ano lectivo de 2018/2019 se irão reformar, o que obrigará à contratação, até 2030, de mais de 34 mil docentes. Na saúde, surgiu o alerta de que este ano se pode atingir o pico das aposentações entre os médicos de família – mais de mil atingem a idade da reforma -, numa altura em que há ainda um milhão de portugueses sem ter um. E a previsão é que os dois próximos anos continuem muito complicados a este nível. E também na justiça os alertas já começaram a surgir, com a falta de pessoal a ser agravada pelas aposentações dos actuais funcionários – só na comarca de Braga, segundo um relatório recente, a média de idades ronda os 55 anos.

“Esta questão do envelhecimento é transversal a toda a administração pública. Agora, o que se torna mais visível, até em termos mediáticos, são questões muito prementes do dia-a-dia das pessoas, como a saúde, a educação dos filhos ou a protecção social. Mas há uma série de serviços que fazem um trabalho de back office, que é indirectamente importante para os cidadãos e as empresas, e que não está a ser efectuado nem está a ser realizado qualquer diagnóstico das necessidades”, alerta César Madureira.

O envelhecimento dos trabalhadores, associado à não abertura de concursos para recrutamento e, em muitos casos, à dificuldade em atrair candidatos quando esses concursos abrem, leva a uma situação de que é difícil sair a menos que algo mude – há poucos funcionários, os que há acabam por ficar sobrecarregados, e, por serem mais velhos acabam por ser também mais propensos a problemas de saúde, o que leva a mais situações de baixa médica, mais sobrecarga para quem fica, menos funcionários disponíveis…

Não há um único concurso externo [nos registos] há mais de 20 anos. Não foi possível fazer uma transmissão de conhecimento intergeracional, o que é uma perda incomensurável

Arménio Maximino, dirigente do STRN

Além disso, há um outro problema, para o qual a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, já alertou, numa audiência parlamentar: a falta de renovação geracional nos serviços. “Está a sair uma geração de funcionários que poderia transmitir ensinamentos e boas práticas a quem vem e essa relève [renovação] geracional, não estamos a conseguir fazê-la”, dizia, em 2019. Arménio Maximino recorre, agora, à mesma expressão. “Não há um único concurso externo [nos registos] há mais de 20 anos. Não foi possível fazer uma transmissão de conhecimento intergeracional, o que é uma perda incomensurável”, diz. Sebastião Santana resume a sua visão da situação: “Das duas uma, ou se alteram as políticas para os trabalhadores da administração pública ou isto só se vai agravar.”

César Madureira também acredita que é assim. “Não há soluções mágicas, eu não as tenho e Portugal não se vai tornar num país rico de um dia para o outro. Mas há uma coisa sobre a qual estou certo: nada se vai fazer, não havendo vontade política. E uma verdadeira reforma tem de implicar uma reforma dos modelos de organização do trabalho”, defende.

Ou seja, defendem ambos, o Estado tem de investir no sector e torná-lo atractivo. Há que abrir concursos e recrutar quem possa substituir os trabalhadores que, ano após ano, saem em elevado número para a reforma. Mas, é preciso que esses concursos, se e quando existirem, sejam capazes de atrair candidatos. “Há muitos factores de desmotivação, mesmo nas carreiras especiais, como professores, médicos, enfermeiros ou informáticos, porque os salários no sector privado são substancialmente maiores. Estamos a empurrar a situação para um sítio em que, daqui a 10 ou 15 anos, os trabalhadores vão ser muito menos. Por um lado, por causa das reformas, e por outro porque não se consegue criar carreiras atractivas para garantir que as pessoas não vão trabalhar para o sector privado”, diz o responsável da Frente Comum.

Estamos a empurrar a situação para um sítio em que, daqui a 10 ou 15 anos, os trabalhadores vão ser muito menos. Por um lado, por causa das reformas, e por outro porque não se consegue criar carreiras atractivas para garantir que as pessoas não vão trabalhar para o sector privado

Sebastião Santana, da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública

O custo de não se mudar de rumo será, certamente, muito pesado, avisa César Madureira: “Temos um Estado do qual me orgulho de ser cidadão, em que o Serviço Nacional de Saúde, com todos os seus erros, deficiências e insuficiências, trata um emigrante ilegal se ele, por exemplo, cair a trabalhar numas obras. Somos dos poucos países em que assim é. A pergunta que temos de fazer é se queremos continuar a fazer isto ou não. Eu, como cidadão, quero. É das poucas coisas em que tenho muito orgulho, porque há valores que não se deveriam negociar.”

Patrícia Carvalho 13 de Junho de 2022, Público