Abandono no Ensino Superior. "A minha maior dificuldade foi não ter dinheiro para comer"

Rayssa, de 19 anos, ponderou desistir do curso quando tinha menos de 20 euros na conta bancária. Os dirigentes associativos Ana Gabriela, Francisco, Ricardo e Tiago traçam o quadro do abandono do Ensino Superior.

Quando chegou a altura de escolher que caminho seguiria, depois da conclusão do Ensino Secundário, Rayssa Leal sabia que a licenciatura em Engenharia Agronómica, em Portugal, seria o seu destino. Em setembro do ano passado, durante a primeira vaga da pandemia, aterrou no Porto e integrou-se na Faculdade de Ciências. «Gosto muito do curso, estou me identificando, é ótimo. Se pudesse voltar atras, tomaria a mesma decisão, talvez eu só optasse por fazer um planeamento financeiro melhor», explica, salientando que «convertendo o real para euro há uma grande desvalorização».

Por este motivo, a brasileira de 19 anos insere-se no grupo de 7% de jovens que já pensaram em desistir do Ensino Superior por razões económicas e nos 25% que admitem ter dificuldades em suportar os custos para prosseguir os estudos, com o agravamento da sua situação financeira devido à pandemia de covid-19.

Estas são conclusões de uma consulta promovida por 11 associações e federações académicas entre 24 de março e 10 de abril, para perceber o impacto da pandemia em termos de habitação e rendimento. Os resultados divulgados traduzem as respostas de 4013 universitários, a frequentar licenciatura e mestrado em instituições de todo o país.

«Não foi uma coisa que eu pensei, mas foi quase imposta por conta da situação toda. Cheguei a pensar que teria de o fazer, mas não foi necessário», confessa a rapariga, referindo-se à desistência do primeiro ciclo de estudos. «Cheguei a um ponto em que não sabia se ia poder continuar aqui porque não tinha dinheiro para pagar a alimentação, as propinas ou o quarto», diz, revelando que a instabilidade económica se agravou em janeiro.

«Pedi ajuda a todo o mundo que consegui, inclusive a Federação Académica do Porto (FAP), os meus pais ajudaram-me, e fui procurar um trabalho», conta, mencionando que, atualmente, o seu principal meio de subsistência é um part-time que concilia com as aulas. «Custa mais um pouco, mas estou tentando fazer o meu melhor. Ainda passo por algumas dificuldades porque trabalho apenas algumas horas por semana», lamenta a brasileira que escolheu viver em território nacional devido «à língua comum» e «ao facto de aceitarem o exame nacional».

«A minha maior dificuldade foi não ter dinheiro para comer. No dia 8 de fevereiro, tinha menos de 20 euros na conta. Fui à junta de freguesia, à FAP e indicaram-me algumas saídas. Vivo numa casa com colegas de quarto. É sempre uma incerteza saber como será o próximo mês, mas tento ao máximo não desistir», clarifica.

«Eu conheço bastante gente que desistiu do curso. Não somente por questões económicas, mas por outras. Por exemplo, eu não tenho capacidade de me concentrar nas aulas online, aprendo muito mais presencialmente, então é complicado», sublinha.

As falhas no estudo

Nas conclusões do inquérito O Impacto da covid-19 no Ensino Superior também é possível ler que as associações académicas notaram «um grande impacto causado pela covid-19», com quase um terço dos estudantes a admitir que o valor de que dispõem mensalmente foi afetado.

Um quinto (20,1%) relataram que, depois de pagar as despesas fixas, que incluem a propina, transportes e habitação, sobram-lhes menos de 50 euros e outros 24,9% não ficam com mais de 100 euros para outras despesas.

De acordo com as respostas dos alunos, o agravamento da sua situação financeira decorreu sobretudo da perda de emprego de um dos elementos do agregado familiar, referido por um terço dos inquiridos. E 27,5% apontam que o negócio da família foi afetado pela pandemia. Entre os trabalhadores-estudantes, cerca de metade perdeu o emprego ou entrou em layoff no último ano.

Ana Gabriela Cabilhas, presidente da FAP, que tem como associada a instituição em que Rayssa estuda, avança que, mesmo depois deste apuramento de dados «existem lacunas naquilo que diz respeito à compreensão do fenómeno do abandono, pois não conseguimos ter a noção total do impacto da pandemia».

A dirigente de 23 anos, mestranda em Ciências do Consumo e Nutrição, salienta que «as reivindicações dos estudantes têm sido feitas, até no âmbito da Resolução n.º 60/2013 em que está prevista a elaboração de um relatório anual acerca do abandono do Ensino Superior».

Na ótica de Ana Gabriela, «o abandono é multifatorial». Por isso considera que, além das condições económicas, «o sucesso escolar e a saúde mental devem ser analisados». Em relação ao primeiro, destaca «que existia uma perceção do percurso académico que não foi ao encontro da realidade, principalmente, devido ao processo do ensino à distância».

Naquilo que diz respeito ao segundo, apesar de não ter a noção total da quantidade de estudantes que desistem dos cursos, traça um quadro daqueles que procuram a FAP. «Muitos querem ajuda psicológica e/ou conhecer os mecanismos existentes ao nível económico. E, assim, percebemos que há fatores que afetam o percurso dos alunos», adianta, alertando que «temos de estudar bem este fenómeno para diminuir a taxa de abandono e para que esta realidade seja erradicada do sistema educativo. Há uma grande falta de informação e uma resolução por cumprir».

‘Há uma elitização’

«Ter pensado ou ponderado desistir, toda a gente já o fez. Outra coisa diferente é perguntar se pondera desistir neste exato momento. Os 7% prendem-se com a consequência das condições económicas. Esta percentagem é alarmante porque o Ensino Superior faz uma triagem, há uma elitização. Se ainda assim temos 7% a ponderar, é um dado grave», começa por elucidar Francisco Maria Pereira, presidente da Federação Académica de Lisboa. «Sabemos que as causas subjacentes à desistência são invariavelmente questões económicas, de saúde mental e motivação», afirma, esclarecendo que «esta última pode ter a ver com perspetivas, aproveitamento e também a parte pedagógica». No inquérito, as associações e federações académicas identificaram «como principal fator para a falta de motivação a falta da componente prática».

Assim, aos 21 anos, o estudante de Economia da Lisbon School of Economics and Management (ISEG), estabelece um paralelismo entre as variadas vertentes. «Se ficamos desmotivados, temos baixo aproveitamento. Se temos problemas económicos, ficamos igualmente prejudicados. E os problemas de saúde mental provocam o mesmo», avança.

«A autonomia das instituições de Ensino Superior é uma conquista do 25 de abril. Isto é muito importante, mas cria grandes discrepâncias nos apoios. Por exemplo, em relação à saúde mental, a Universidade NOVA tem um programa ótimo que é o The Bridge. Os estudantes podem aceder a um chat com psicólogos e desabafar em anónimo», frisa.

«Os problemas de saúde mental não são novos: entre os 18 e os 24 anos, estamos mais suscetíveis a ter problemas do foro psicológico, estando esta propensão associada aos confinamentos, às perdas da capacidade económica e à pressão do Ensino Superior», garante.

No entanto, em março, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da instituição mencionada divulgou os resultados de um inquérito que realizou e percecionou que congelar a matrícula ou desistir do curso já passou pela cabeça de quase metade (43,8%) dos 483 inquiridos.

Francisco considera que o panorama desta faculdade não é surpreendente, na medida em que «não nos podemos esquecer de que mais de 90% dos estudantes afirmaram que as questões de saúde mental afetaram o seu aproveitamento nem que, por outro lado, cerca de um terço tomaram psicofármacos durante a pandemia».

Questionado sobre as opiniões de quem desvaloriza o ensino online, o jovem remata: «É pura desinformação. Quem critica é uma franja que não reflete a sociedade».

 ‘O abandono é mais informal, nem congelam a matrícula’

«Tem havido mais abandono agora. As pessoas fizeram a matrícula e, ao longo do tempo, deixaram de frequentar as aulas», explicita Ricardo Nora, de 25 anos, presidente da Associação Académica da Universidade da Beira Interior (UBI).

«Na reunião com o Presidente da República, mencionámos o abandono e deixámos claro que queremos procurar medidas de prevenção», adianta o licenciado em Gestão e mestre em Engenharia e Gestão Industrial, lembrando o dia 11 de abril, em que as associações estudantis se reuniram com Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Belém, para debater a valorização dos jovens universitários e o direito universal ao ensino superior. Outros temas, como o impacto da pandemia, a propina zero e a revisão do regime de prescrições também estiveram em cima da mesa.

«Os serviços de ação social tentaram dar resposta imediata com a criação de fundos de emergência para responder a algo que apareceu e que ninguém esperava. A ajuda é muita, mas as dificuldades são ainda mais», declara. «Aqui, quase 70% dos estudantes já pensaram em desistir. Tanto a saúde mental como a questão do abandono são assuntos que não estão a ser resolvidos. Estamos a falar destes desde setembro e medidas efetivas ainda não foram encontradas».

Ricardo reconhece que, além dos estudantes internacionais, também os portugueses deslocados da sua área de residência, aproximadamente 90% dos alunos que frequentam a UBI, «têm uma taxa muito mais elevada de possível abandono do Ensino Superior». Estes «têm de fazer deslocações brutais e tal leva a que pensem mais no abandono».

A seu lado, aqueles que experienciam a vida académica pela primeira vez também podem sentir na pele a diferença entre aquilo que almejam e aquilo com que são confrontados. «Viram o que é uma desilusão em relação à frequência do Ensino Superior. Nota-se que, com o regresso às aulas presenciais, se calhar, muitos até preferiam ficar mais por casa. E alguns começaram a trabalhar porque muitas aulas eram online».

«O abandono é mais informal, nem sequer congelam a matrícula e é detetado quando já não é possível fazer nada. Os próprios gabinetes das instituições de Ensino Superior não têm recursos humanos nem mecanismos e atribuem esta análise aos gabinetes de qualidade», condena o universitário, porque «estes já fazem inquéritos à qualidade dos métodos pedagógicos, da cantina, etc.».

«É preciso valorizar-se o Interior. Fala-se muito na descentralização mas, na teoria, tudo é distinto. Tem de se valorizar aquilo que é feito pelas universidades e pelos politécnicos que não estão inseridos nas grandes metrópoles».

 ‘Houve custos desnecessários’

«As nossas instituições não estavam tecnologicamente preparadas para ceder material informático aos alunos e existiu um reforço de compra e tentativa de disponibilização», afirma Tiago Diniz, Presidente da Federação Nacional de Associações de Estudantes do Ensino Superior Politécnico. No seu entender, «a pandemia revelou que as universidades e os politécnicos não estavam minimamente atualizados».

Para ilustrar o problema, o estudante de Contabilidade e Administração no Instituto Superior de Contabilidade e Administração, de 24 anos, enfatiza o caso dos estudantes deslocados. «Muitos deles vivem em zonas onde ainda nem existe rede de Internet e ficaram excluídos do ensino à distância».

Por outro lado, não olvida aqueles que «na incerteza provocada pela pandemia, ficaram na residência» ou «aqueles que alugaram um quarto, estiveram meses com este custo e mantiveram-no porque não sabiam ao certo quanto tempo demoraria o confinamento».

«Houve custos desnecessários e não havia solução disponível à data. Muitos entregaram os quartos e, quando vão fazer exames, não têm onde ficar», denuncia, ainda que, à sua vez, elogie os «avanços significativos em matéria de ação social, pois há mais estudantes com bolsa, subimos os seus rendimentos – antigamente, a fórmula dava um valor mais abaixo, mas subindo mais têm acesso – e acertámos o complemento de alojamento porque os custos de vida nas cidades são diferentes».

Porém, alerta para duas situações que considera não estarem devidamente salvaguardadas. «A primeira tem a ver com os estudantes que são de um agregado unipessoal, ou seja, são só eles mesmos – estão muito mais expostos a dificuldades do que os restantes» e o segundo caso está relacionado com «aqueles que estão em agregados monoparentais, com um pai ou uma mãe apenas, sendo que tenham mais tendência para abandonar os cursos».

«Temos vindo a fazer alertas e, até agora, nada foi feito», lamenta. «Os casos chegam às associações de estudantes. Por exemplo, sei que no Instituto Politécnico da Cávado e do Ave, até alguns dirigentes associativos foram trabalhar e nem sequer vão às aulas porque o trabalho não o permite. E, muitos deles, vão pagando a propina no sentido de irem tentando estar, mas sem qualquer aproveitamento».

Tal ocorre porque «as situações que chegam às associações de estudantes são já de desespero, de quem pergunta por alguém que os possa ajudar porque nada está a correr bem», revela Tiago. E lamenta: «A ausência de mecanismos faz com que só tenhamos acesso a estas pessoas em fase sem retorno».

Sol - Maria Moreira Rato – 27 junho 2021