Entrevista com Alberto Amaral

Vagas a mais? “Há cursos com um numerus clausus exagerado”

Os principais problemas de qualidade do ensino superior continuam a estar nos privados, defende Alberto Amaral, que deixa a agência de acreditação do sector ao fim de 12 anos. A precariedade laboral dos professores é um ponto essencial, diz. Mas também continua a haver problemas no sector público, sobretudo por excesso de vagas em alguns cursos.

É o fim de uma era no ensino superior nacional. Alberto Amaral deixou a liderança da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), de que foi mentor e presidente desde a sua fundação. Passaram 12 anos e o órgão regulador do sector tem, pela primeira vez, um novo rosto – João Guerreiro, que até agora tinha liderado a Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, que tomou posse na sexta-feira.

Entrevista com Alberto Amaral

Antes de liderar a A3ES, Amaral foi reitor da Universidade do Porto, entre 1985 e 1998, e fundou duas unidades científicas, o Centro de Investigação em Química da Universidade do Porto e o Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior. “Passei a vida toda a trabalhar”, diz. Aos 78 anos, não vai parar. Entre a coordenação do think tank sobre Educação da Fundação Belmiro de Azevedo, Edulog, e convites para ajudar a implementar um sistema de garantia de qualidade no ensino superior de Macau e integrar uma entidade de avaliação à escala europeia, garante ter “duas ou três coisas a fazer” nos próximos tempos.

Hoje já não há cursos superiores a funcionar que não tenham qualidade?
Poderá haver um ou outro. Há um problema particularmente complicado — e isso acontece mais no privado —, que é não haver estabilidade do corpo docente das instituições. Não há uma carreira docente no ensino superior privado e as pessoas não têm grande estabilidade. Essa grande flutuação do pessoal docente é um problema em termos de qualidade e isso ainda não está resolvido, não sei porquê. Nunca houve coragem de ter um estatuto de carreira docente para o privado.

O ministro Manuel Heitor chegou a anunciá-lo, mas, entretanto, disse que o tema não é uma prioridade.
Mas, de facto, até é [uma prioridade]. Sem um estatuto da carreira docente particular e cooperativo, estas coisas não se resolvem. Os professores estão sempre numa situação de intranquilidade, são contratados a recibos verdes e, quando arranjam uma coisa melhor, vão-se embora. Um curso em que o corpo de professores não é estável, tem problemas de qualidade.

A A3ES não tem grande capacidade de influenciar políticas.
Não. A função dela é simplesmente ver se os cursos têm qualidade para funcionar, ponto final.

Muitos dos cursos encerrados desde a entrada em funcionamento da agência, foram-no por decisão das próprias instituições. A auto-regulação funcionou?
Quando começámos o nosso trabalho [em 2009], tínhamos relatórios sobre os cursos, discutíamos com as instituições, chamando à atenção para os problemas que havia. De uma maneira geral, as instituições reagiam, encerrando aquilo que tinham que encerrar. As próprias instituições — e isso foi positivo — tomaram consciências de que havia problemas que não podiam continuar.

Houve também “vítimas” no processo de acreditação institucional, com 22 instituições, todas privadas, a encerrar desde 2009. Esse número está estabilizado?
Claro que sim. Aquilo que foi eliminado foram instituições que, em boa verdade, nunca deviam existir. Que não tinham sequer capacidade de sustentar um corpo docente. A mesma coisa em relação aos cursos. Aliás, o que se tem verificado é que as próprias instituições, nomeadamente nas propostas de novos cursos, foram tomando precauções e hoje o número de respostas negativas aos pedidos de acreditação diminuiu substancialmente em relação aos anos iniciais.

Nos últimos anos, o Governo autorizou o aumento de vagas nos cursos com procura elevada pelos melhores alunos. Se estes continuarem a aumentar o número de estudantes, pode haver estudantes a mais para as condições que a instituição oferece?
Pode, mas aí há uma intervenção da agência, que pode condicionar o número máximo de alunos face à disponibilidade do corpo docente. Há situações de cursos em que há um numerus clausus exagerado, como por exemplo alguns cursos de Direito, que têm provavelmente um número excessivo de alunos.

Qual é o risco de um numerus clausus excessivo? 
Pode haver uma conjugação de efeitos negativos. Um deles é na qualidade, em particular se houver falta de docentes de qualidade. Em segundo lugar, o ensino é em regra mais eficaz se houver uma maior relação de proximidade, o que exige números menores. Por exemplo, eu estudei em Cambridge onde havia um tutor científico por cada dois estudantes, o que só é possível com números [de estudantes] limitados. Quando os estudantes são às centenas dão-se aulas em grandes anfiteatros e perde-se a possibilidade de discussão com eles. Não será possível implementar um ensino centrado nos estudantes, como preconizado pelo Processo de Bolonha com números excessivos de estudantes. Finalmente, [os cursos] podem ter problemas de empregabilidade dos alunos.

Há situações de cursos em que há um "numerus clausus" exagerado, como por exemplo alguns cursos de Direito, que têm provavelmente um número excessivo de alunos.

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Está satisfeito com a forma como foi conduzido este processo que levou à aprovação do curso de Medicina na Universidade Católica?
O que houve de negativo foi que a própria Universidade Católica deu publicidade à questão. Começaram a dizer que iam fazer a faculdade e tornaram isto visível do ponto de vista público. Se não tivesse havido esta publicidade, mesmo havendo aquela primeira recusa, eles corrigiam os problemas, eram aprovados e não havia problema nenhum. Foi a publicidade que foi dada a tudo isto que tornou o processo mais complicado.

A forma como a decisão foi tomada não o deixa desconfortável?
Não. No caso da recusa, havia dois pareceres, o dos peritos e o da Ordem dos Médicos, claramente negativos. Tendo dois pareceres negativos, quem somos nós para inverter isto? Nestes processos, a proposta é reenviada à instituição, que pode corrigi-la. Na sequência disso, o parecer dos peritos passou a ser positivo e o parecer da Ordem dos Médicos, por muito que o senhor bastonário diga o contrário, dizia que, se se cumprissem determinadas condições, o curso podia ser aprovado. Portanto, é um parecer condicionado. Foi o que fizemos: o curso foi aprovado na condição de cumprir determinados requisitos. Se não cumprir, poderá perder a acreditação.

A aprovação de doutoramentos passará a estar condicionada à existência de investigação nas áreas em que as instituições querem oferecer as formações. O sistema de ensino superior está pronto a lidar com uma exigência deste tipo?
Não. No Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior exige-se, para que uma instituição seja classificada como uma universidade, a existência de pelo menos três doutoramentos. Isso forçou muitas instituições a criar doutoramentos, às vezes sem recursos. O que acontecia era que, muitos desses doutoramentos não tinham por base um processo de investigação dentro da própria instituição e os seus professores faziam investigação noutras universidades. O que a [nova] legislação determina é para que uma instituição possa oferecer um doutoramento é necessário haver investigação local com boa qualidade, um centro de investigação [classificado como] “Muito Bom”. Se isso fosse aplicado hoje, teríamos problemas substanciais na maioria do sector privado. No público, era possível que também tivéssemos em algumas instituições.

Samuel Silva | 19 de Dezembro de 2020, Público