Mudar as regras de acesso ao superior? Reitores sem posição, pais a favor

Devíamos aproveitar as medidas excepcionais a que a pandemia obrigou para discutir o modelo de acesso ao superior? Os exames do secundário condicionam demasiado o trabalho desenvolvido neste nível de ensino? Mudanças no recrutamento dos estudantes podiam levar a maior sucesso no superior? Não há consensos.

O contexto de pandemia faz com que, este ano, pela primeira vez em cerca de 20 anos, os exames nacionais percam uma das suas duas funções. Não vão ser obrigatórios para concluir o ensino secundário, sendo apenas realizados aqueles de que os alunos precisem para entrar num curso superior. Não contarão assim para a nota final do secundário, funcionarão apenas como provas de ingresso nas universidades e politécnicos, valendo até 50% da nota de candidatura. E várias vozes têm defendido que se devia agarrar a oportunidade para repensar o modo como são seleccionados os candidatos ao prosseguimento de estudos.

As decisões do Governo para este ano têm como objectivo reduzir o número de estudantes que têm de ir fazer os exames nacionais num momento em que a covid-19 continua a não estar controlada. Serão realizadas menos 90 mil provas. Se, no ano passado, cada aluno fazia, em média, 2,2 exames, este ano cada um inscreveu-se em menos de dois (1,7 provas).

As regras especiais acabam por, num contexto de excepção, fazer aquilo que têm vindo a reclamar docentes e pais: separar o momento da conclusão do secundário do da candidatura ao superior. “Os professores passam o 11.º e o 12.º ano a preparar os alunos para responderem aos exames, em vez de estarem a trabalhar as suas competências”, sintetiza o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), Jorge Ascenção.

Há cerca de um mês, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, tocava noutro ponto importante neste debate: “Falamos muitas vezes no básico e no secundário sobre sucesso escolar e abandono. Quase nunca se fala do sucesso e do abandono escolar no ensino superior. E é importante ter essa discussão. Porque é que tantos alunos que entram no ensino superior abandonam ou têm insucesso?”, questionava, em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença. Para responder de seguida: “O que acontece no sistema em Portugal é que é o sistema de ensino não superior que prepara a seriação dos alunos, obviamente com os critérios concretos de determinados exames, disciplinas e vias. As instituições de ensino superior é que têm de reflectir se querem fazer de outra forma, com critérios diferentes, para fazerem uma selecção diferente.” 

"Porque é que tantos alunos que entram no ensino superior abandonam ou têm insucesso? Em Portugal é o sistema de ensino não superior que prepara a seriação dos alunos. As instituições de ensino superior é que têm de reflectir se querem fazer de outra forma, com critérios diferentes, para fazerem uma selecção diferente.”

Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação

“Aproveite-se a oportunidade de ouro para o debate e a revisão do modelo de acesso ao ensino superior”, desafiou em Abril, num artigo de opinião no PÚBLICO, Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas. Que várias vezes tem lembrado, bem antes da pandemia, que se os responsáveis das universidades tantas vezes se queixam da impreparação dos alunos, talvez pudessem envolver-se mais na escolha dos mesmos. 

Jorge Ascenção espera agora que um ano sem exames de conclusão do secundário sirva para “produzir pensamento” sobre esta questão, que permita uma “discussão alargada” para que “não se volte à situação anterior”.

“São várias as vozes que afirmam ser necessário alterar o modelo de acesso ao ensino superior e talvez seja necessário discutir o assunto numa perspectiva de melhoramento”

José Eduardo Lemos, Conselho de Escolas

“São várias as vozes que afirmam ser necessário alterar o modelo de acesso ao ensino superior e talvez seja necessário discutir o assunto numa perspectiva de melhoramento”, admite o presidente do Conselho de Escolas, José Eduardo Lemos. No entanto, reconhece, não viu “até hoje nenhum projecto de modelo de acesso mais justo e equilibrado que o actual”.

O acesso ao ensino superior é das questões onde há maior diferença de opiniões, admitia Brandão Rodrigues na sua entrevista. Por isso, não é num momento de excepção o que se fazem mudanças, explicava. “Outra coisa é utilizar a mochila que isto nos dará para que, na discussão posterior, que terá de ser alargada, aturada, possamos chegar a conclusões.” 

Desde o final da década de 1990, os exames nacionais têm a dupla função de servirem para a conclusão do ensino secundário e para acesso ao ensino superior. Não é um cenário diferente do que é encontrado no resto da Europa.

A generalidade dos países tem exames de conclusão do secundário — Baccalauréat em França, Abitur na Alemanha ou Matura em boa parte dos países do Leste europeu. Tal como em Portugal, são um dos indicadores essenciais para determinar as possibilidades de acesso dos estudantes ao ensino superior. A excepção é a Suécia, que, na década de 1960, aboliu o exame estatal de conclusão do ensino secundário. No entanto, para aceder ao ensino superior, os estudantes suecos têm de responder a uma prova de acesso (SwaSAT), com 160 perguntas de escolha múltipla. Em Espanha e na Finlândia também são realizados exames específicos para acesso ao superior.

Os debates internos dos parceiros europeus têm semelhanças com o nacional. Os exames de conclusão do ensino secundário “têm cada vez mais funções, que podem entrar em conflito entre si, o que está a ter efeitos negativos nos sistemas de admissão no ensino superior”, sublinhava um estudo sobre os sistemas de admissão publicado pela Comissão Europeia em 2017, com coordenação do investigador Dominic Orr, que trabalha na Eslovénia, citando professores de diferentes países que demonstravam esta preocupação.Aumentar

Prossegue o mesmo relatório: “O alto risco do exame significa que a sua preparação supera todas as outras dimensões do ensino secundário, levando os professores a concentrarem-se demasiado na necessidade de curto prazo de ajudar os alunos a passar nos exames, em vez de aprofundar os estudos.”

A entrada do próximo ano lectivo ficará ainda marcada pela criação de uma nova via de acesso ao ensino superior: um concurso especial, destinado aos alunos do ensino profissional e artístico, os únicos que não são sujeitos a exame obrigatório para acabar o secundário. A intenção é atrair estudantes que não estavam a chegar ao ensino superior — 82% dos que concluem um curso profissional não prosseguem os estudos.

Em Setembro, estes estudantes, destas vias, vão fazer exames regionais, que serão realizados pelos politécnicos. Ao fazê-lo, os institutos “estão a dar um sinal de que são capazes de fazer exames de acesso ao ensino superior”, aponta o presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP), Pedro Dominguinhos.

Ainda que essa não seja uma posição oficial do Conselho Coordenador dos Politécnicos, o seu presidente entende que esta discussão “tem de estar em cima da mesa”

Ainda que essa não seja uma posição oficial do CCISP, o seu presidente entende que esta discussão “tem de estar em cima da mesa”. Em meados dos anos 1990, as instituições de ensino superior chegaram a ser responsáveis pela elaboração de provas específicas para o ingresso dos alunos.

Universidades “têm maturidade"

O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas não tem uma posição sobre o assunto e o modelo de acesso ficou de fora da Convenção do Ensino Superior, organizada no ano passado. O presidente daquele órgão, Fontainhas Fernandes, que é também reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, é pessoalmente favorável ao actual sistema: “Funciona bem e de uma forma transparente.”

“O maior problema é que este tema nem sequer está a ser discutido”, lamenta o reitor da Universidade Nova de Lisboa, João Sàágua, que tem sido uma das poucas vozes dentro do ensino superior a reclamar um papel mais interventivo das universidades na selecção dos seus estudantes.

“O maior problema é que este tema nem sequer está a ser discutido”

João Sàágua, reitor da Universidade Nova de Lisboa

Sàágua não defende uma mudança imediata do modelo de acesso ao superior: “O que proponho é que se ensaiem mecanismos adicionais. Por exemplo, as instituições podem definir critérios específicos para 5% dos alunos e os dois modelos podem conviver por algum tempo, para poder ser feita uma avaliação.” Qualquer solução não pode, porém, pôr em causa uma “preocupação maior”, que é levar o maior número de pessoas para o ensino superior, acrescenta.

As universidades “têm maturidade” suficiente para uma solução destas, diz o mesmo responsável, para quem essa solução podia permitir encontrar uma solução para alguns dos problemas que encontra no actual sistema, como o “desajustamento” entre a capacidade de um aluno ter boas notas no ensino secundário e a apetência para o curso em que pretende entrar, o que podia ser resolvido com “um momento de contacto anterior” entre estudante e instituição, que podia passar pela realização de uma entrevista.

O processo de entrevista é “muito caro e muito moroso”, pelo que apenas as instituições de “elite”, nomeadamente no Reino Unido, o usam com regularidade, sustenta o investigador do Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior (CIPES) Pedro Teixeira.

Sistemas como o britânico, que dão um papel central às universidades na selecção dos seus alunos, “introduzem enviesamentos do ponto de vista socioeconómico”, avisa o mesmo especialista: “Quando se alarga o número de critérios, são as famílias com mais recursos que têm mais capacidade de providenciar aos seus filhos o acesso, por exemplo, a experiências extra-escolares que lhes permitem construir um currículo.” Por isso, não se mostra adepto de alterações ao sistema de acesso, até porque o actual modelo está “consolidado e é visto como transparente e fiável”.

“Quando se alarga o número de critérios, são as famílias com mais recursos que têm mais capacidade de providenciar aos seus filhos o acesso, por exemplo, a experiências extra-escolares que lhes permitem construir um currículo.” Por isso, Pedro Teixeira não se mostra adepto de alterações ao sistema de acesso

Na última década, um “número crescente de sistemas de ensino superior deu às instituições de ensino superior mais liberdade para decidir que tipo de candidatos querem receber”, sublinha, num outro artigo, Dominic Orr, que tem estudado os sistemas universitários europeus.

Um modelo centralizado como o português, em que os candidatos entram num concurso nacional e uma única entidade distribuiu os candidatos pelas diferentes instituições, é minoritário no contexto europeu. Seis outros países têm um sistema semelhante — ainda que haja diferenças de país para país. A Suécia, por exemplo, tem também concursos locais. De resto, mesmo em Portugal, o concurso nacional de acesso representa apenas 57% de todas as entradas no ensino superior. Os restantes entram por outras vias, como, por exemplo, através de concursos especiais em que têm de prestar provas de aptidão (cursos de artes e desporto, nomeadamente).

Samuel Silva Público - 27 de Junho de 2020