Marçal Grilo e Nuno Crato: "Não há nada que substitua as aulas presenciais"

O DN desafiou Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação no governo PS de António Guterres, e Nuno Crato, ministro no governo PSD de Passos Coelho, a encontrarem-se e a debaterem o futuro da Educação.

É no 8.º andar da Fundação Francisco Manuel dos Santos que a conversa com Marçal Grilo, via Zoom, e Nuno Crato decorre.

É o ecrã gigante na parede ao fundo da sala do oitavo andar do espaço Iniciativa Educação, em Lisboa, que nos reúne à conversa durante quase duas horas. Nuno Crato (N.C.) recebe-nos no local onde hoje lidera aquele projeto e Marçal Grilo (E.M.G.) acompanha-nos à distância, por Zoom, de sua casa.

A pandemia assim o obriga, mas será este o futuro da educação? Acreditam que não. Ambos defendem que este novo coronavírus não veio para revolucionar o que foi uma das "mais extraordinárias invenções da humanidade": o ato educativo, presencial, a transmissão do conhecimento cara a cara, olhos nos olhos.

Ambos aguardam que o regresso à normalidade seja tranquilo, não sabem é se será em setembro, dezembro ou só daqui a um ano. A covid-19 não dá certezas, mas aqui fica um resumo da conversa, tal como fluiu.

O mote estava lançado: a pandemia veio para mudar os princípios do ensino? O ensino à distância é um modelo para vingar? A organização escolar vai mudar? Voltando às turmas mais pequenas, aos horários mais concentrados, a mais contratação de mais professores?

E a conversa começa, exatamente, por aquilo que desejam que não venha a acontecer: mudanças conceptuais e estruturais por causa da pandemia. Do outro lado do ecrã, Eduardo Marçal Grilo ajeita a câmara e toma a dianteira: "Eu diria que todas as questões são independentes da pandemia, embora esta tenha trazido muitas alterações a este final de ano. Não sei se o Nuno está de acordo, mas começava por dizer que aquilo a que estamos a assistir, praticamente em todo o mundo, não é ensino à distância. É uma espécie de ensino remoto de emergência, o que é muito diferente. Nada disto foi preparado, tudo nasceu de muita improvisação e debaixo de grande pressão, mantendo-se os programas que estavam a ser dados, colocando-se apenas os professores e os alunos em casa. Foi uma alteração que teve de ser feita para se minimizar os danos, embora venha a ter um grande dano no processo de aprendizagem. O ensino não estava preparado para isto. Mostrou que tem as suas potencialidades, os professores, e alguns alunos terão encontrado aqui formas muito interessantes de poderem contactar e de conversar, e de, eventualmente, progredir nos conhecimentos, mas não julgo que isto seja uma fórmula ou método para poder vingar. Pelo contrário, acho que estes meses estão a mostrar a importância enorme do ensino presencial."

É no 8.º andar da Fundação Francisco Manuel dos Santos que a conversa com Marçal Grilo, via Zoom, e Nuno Crato decorre.

Porquê? Pela necessidade do contacto, relação aluno-professor?
E.M.G.: O ato educativo é um pouco como o ato médico, onde também há a telemedicina, mas que não substitui a consulta. Eu como paciente não prescindo de uma consulta com o médico. O caso do ensino presencial, professores e estudantes dentro de uma sala, sejam 10, 15, 20 ou 30, é algo que vem desde Platão. O ensino tem uma característica de sociabilidade, de relação de confiança entre quem ensina e quem aprende. Não tenho vergonha em dizer que há quem ensina e há quem aprende, porque é muito interessante estar numa sala com uma pessoa que domina muito bem determinada matéria, que a explica e que é capaz de ginasticar as ideias de quem a ouve, sobre as coisas fundamentais.

Na memória recente tem uma entrevista do presidente da OCDE, Andre Schleicher, ao jornal Observador, e aproveita as suas declarações para reforçar a ideia. "Ele diz uma coisa muito importante: "O ensinar não é um lugar." Estou de acordo, mas a sala de aula é um lugar de enorme importância, porque ali processa-se o ato educativo, o ato da transmissão do conhecimento, o ato da articulação dos conhecimentos." E continua: "Bom, podemos dizer que o Dr. Google tem tudo. Não tem. Não se faz a formação de base de um jovem apenas em frente a um computador a consultar o Dr. Google ou outros sites."

O que falta?
E.M.G.:
Há um conjunto de princípios e de fundamentos que são a base do conhecimento, que nos permitem ginasticar e articular o conhecimento mais informativo. Ou seja, aquilo que aprendemos é uma ínfima parte do que nós não sabemos. Conhecemos muitíssimo pouco do que é desconhecido. E o desconhecido é cada vez maior, porque cada vez o conhecimento é maior. Portanto a sala de aula, o ensino e a escola são uma peça fundamental, o professor é uma peça fundamental.

E volta a referir Schleicher para discordar dele. "O professor não é apenas um tutor, coordenador ou orientador. É mais do que isso. É alguém que transmite conhecimentos de uma determinada forma. É por isso que há bons e maus professores. Mas para rematar esta primeira ronda, diria que há algumas potencialidades na utilização das tecnologias, sejam elas quais forem, mas, na minha opinião, estas nunca substituirão as aulas presenciais. Estas precisam de ter gente preparada para as fazer, com boa formação científica, conhecedora e capaz de transmitir informação e gerar conhecimento.

"Estava à espera de que disséssemos coisas diferentes, mas estou 100% de acordo com o que diz o meu amigo Eduardo."

Ao longo da intervenção de Marçal Grilo, Nuno Crato antecessor de Tiago Brandão Rodrigues, abana a cabeça em sinal de concordância. E confessa: "Estava à espera de que disséssemos coisas diferentes, mas estou 100% de acordo com o que o meu amigo Eduardo acabou de dizer." É assim que se tratam. Conhecem-se de há muito, apesar da diferença de dez anos na idade. Marçal Grilo tem 78 anos, não há como o esconder, "está na internet, professor", dizemos. Ele ri-se. Nuno Crato tem 68. Os dois escolheram as ciências exatas, a engenharia mecânica e a matemática. Ambos professores universitários e ex-ministros da Educação reagem da mesma maneira quando questionamos:

Então, nada disto tem que ver com perspetivas ideológicas, porque aqui um e outro posicionam-se em campos diferentes?
E.M.G. : [Ri-se} Se metemos a ideologia nestas matérias estamos perdidos.

N.C.: É isso mesmo. Tem que ver, sem parecer que estou a fazer um autoelogio, com experiência e bom senso. Qualquer um de nós, que passou pela sala de aula como professor, que passou pelo Ministério, sabe que o que esta alteração veio revelar foram as grandes virtudes do ensino presencial. Por exemplo, o que se vê agora é que todos estamos com saudades das aulas presenciais. Nós professores e alunos estamos a dar o nosso melhor, mas percebemos todos os dias que se estivéssemos uns em frente aos outros, apesar de todas as tecnologias que existem, haveria matérias em que poderíamos ir mais longe e de maneira mais eficaz.

A pandemia por si não vai fazer que se melhore o funcionamento das escolas.

Porque o ensino é de facto um ato social?
N.C.: O ensino é um ato social. O facto de estarmos numa sala de aula, cara a cara com os alunos, o facto de poder haver dúvidas, interrupções, o que é normal, e o professor poder estar constantemente a verificar o que se passa e a intervir, é uma coisa fantástica. O bom professor está constantemente a verificar se a mensagem que está a transmitir está a ser entendida ou não pelos olhos dos alunos, pela expressão facial, se estão a tomar atenção ou não, ou onde há mais dificuldades. A aula presencial é uma invenção extraordinária da humanidade, e é extraordinariamente eficiente e agradável em termos de transmissão do conhecimento. A relação numa sala de aula, entre aluno e professor, é algo que pode ficar para a vida, não é só a transmissão de conhecimentos, mas também de capacidades, de atitudes, de valores. E é tudo isto que faz o ensino.

E sobre o ensino à distância...
N.C.: Eu diria que a primeira grande conclusão que se tira do que estamos a viver é que não há nada que substitua a aula presencial. A segunda é que, mesmo num momento de emergência, avançámos, mas como diz o Eduardo, não é ensino à distância, não foi planeado. Mas temos de tirar o chapéu aos professores e aos alunos - sobretudo aos professores, porque ensinar desta forma é muito cansativo. É um estilo de atenção, de concentração e de ignorância sobre o que se está a passar do lado de lá que causa ansiedade. Será que estão a perceber ou não? Porquê? Acham bem? É uma ansiedade e uma atenção que esgotam. Eu tenho uma grande vantagem. Sou professor universitário, estou no topo da carreira, dou menos aulas e já não tenho filhos em casa. Imagino o que é a vida de um professor com os seus 30 ou 40 anos, com filhos em casa, muitos a viver em apartamentos pequenos, porque o ser professor não é uma profissão rica, deve ser ainda mais esgotante. Deste ponto de vista a sociedade deve refletir sobre os ótimos professores que temos.

Elogia alunos e pais. Diz que a lição a tirar é a de que nos adaptámos com grande rapidez. E faz um parêntesis para contar que está a reler A Peste, de Albert Camus, e Os Noivos, de Alessandro Manzoni. Obras que contam histórias em tempos de pandemia, na II Guerra Mundial, e no século XVII, e onde descobre que há coisas que são iguais ao que se vive hoje, como a ansiedade com os filhos, com quem pode adoecer, a separação dos que adoecem e dos que estão sãos, etc. Mas há outras completamente diferentes, como a incapacidade de comunicação. "Ou seja, apesar de tudo, hoje, estamos numa situação humanamente diferente. Houve um progresso imenso, mas se isto nos tivesse apanhado há dez anos, se calhar não estaríamos tão preparados."

E.M.G. : Nuno, deixa-me só voltar atrás para referir uma coisa ainda sobre a experiência do ensino remoto. Há dias ouvi uma professora dizer que esta experiência era muito difícil, mas havia alunos que lhe estavam a dizer coisas pelo Zoom que nunca lhe tinham dito. O facto de o aluno estar em casa também pode trazer para os professores algumas experiências úteis para dentro da sala de aula. Pode haver ganhos, no sentido de os alunos se abrirem mais e serem capazes de dizer coisas que não diriam presencialmente. Por exemplo, o bullying diminui, não há contacto. Acho que valerá a pena fazer uma avaliação séria de tudo isto, que deveria passar pelos professores, pelos alunos. Porque, e agora vou ser um pouco dicotómico e simplista, se dividirmos os alunos entre os que têm muito interesse e os que têm pouco interesse, para estes o ensino remoto é péssimo. Para os outros poderá ter alguns ganhos. Faça-se uma avaliação, sobretudo para enriquecer o que se passa dentro da sala de aula. E estou de acordo com o Nuno: temos de tirar o chapéu aos professores que foram capazes de dar uma volta ao ensino em dias.

Marçal Grilo e Nuno Crato concordam que esta experiência veio mostrar que o papel do professor é indispensável.

Mas o ensino online não pode beneficiar o superior?
E.M.G. : É evidente que tem imenso material de estudo e de conteúdo que pode ser transmitido através das plataformas que existem, mas nada disto substituirá a sala de aula.

Mais uma vez riem-se. Nuno Crato diz: "A minha perspetiva é muito idêntica à do Eduardo. Esta experiência trouxe progresso no acesso às novas tecnologias para alunos e professores. Sei que vai ser benéfico no futuro. O futuro pode estar numa mistura do ensino presencial e do remoto. Mas há que distinguir. Uma coisa é a generalidade dos alunos. Para estes a sala de aula é o meio preferencial, podendo ser complementada com pesquisas na internet, audição de vídeos, trabalhos de grupo. Depois há os outros, que podem beneficiar com o ensino online, por estarem fora, não se podem deslocar à universidade, ou porque optaram por fazer mesmo cursos online de outros países que lhes podem dar créditos. Não podemos ser radicais. Mas dizer que a distância vai substituir o ensino presencial, isso não vai. O conhecimento, e isto é uma das coisas fundamentais da psicologia do último século, permite adquirir mais conhecimento. Portanto, quem sabe alguma coisa vai ao Google, e pode ser-lhe útil, quem não saiba, vai e não lhe serve de nada. A ideia de que tudo está na internet é uma ilusão. A melhor maneira de pesquisar é saber o que se está a procurar. E isso significa que a melhor maneira de aprender alguma coisa é já saber alguma coisa. E é isto que esta experiência está a mostrar. Os alunos que conhecem alguma coisa chegam às plataformas e sabem o que vão perguntar e como encarar o problema.

Queremos dar outro rumo à conversa, passou pouco mais de meia hora, mas o tema persiste. Queremos saber como poderão ser resolvidas as questões que hoje preocupam professores, pais e alunos. Mas Marçal Grilo interrompe: "Espere, o Nuno disse uma coisa muito interessante, que vale a pena reforçar, que é a ideia sobre a importância do conhecimento. É que são as pessoas com mais conhecimento, as que sabem mais, que têm mais a noção de que sabem pouco."

N.C.: Exatamente.

E.M.G.: Quanto mais se sabe maior é a noção de que se sabe pouco. Parece um paradoxo, mas não é. Sobretudo porque o conhecimento avança a uma velocidade tal, que o que sabemos é uma ínfima parte em relação ao que não sabemos. E esta ideia deve ser transmitida aos alunos mais novos. A aprendizagem é algo constante. Quanto mais conhecimento temos maior será a nossa capacidade de fazer correlações e isto deve fazer parte da curiosidade, do interesse, e também do trabalho, porque implica esforço, disciplina, ler, tirar notas, escrever, discussão e exigência. A escola é tudo isto e, às vezes, até sacrifício. Não tenho medo de usar esta palavra.

Nuno Crato, vamos então para as questões mais práticas...

O que pode acontecer é que o regresso à normalidade escolar tenha de ser faseado.

N.C.: Espere. Há uma conclusão a tirar da experiência que estamos a viver. O bom ensino é o mesmo. Os princípios são os mesmos, não é o meio que muda o ensino. Portanto, mudar o ensino em função da pandemia, desejo que não. O que pode acontecer é que o regresso à normalidade escolar seja faseado, mas essa é uma necessidade que não conseguimos prever.

Não se deve pensar em redução de turmas, horários, contratação de mais professores?
N.C.: Para se ter segurança absoluta precisaríamos de quase um ginásio para dez alunos. Não faz sentido. O que faz sentido é ter-se cuidado, prepararmo-nos para a necessidade de desfasamento dos estudantes nas aulas, de salas maiores para algumas situações e para a existência de turnos nas aulas presenciais. Mas não quer dizer que sejamos obrigados a mudar a organização escolar por causa da pandemia.

E.M.G.: Estou mais afastado desta realidade, mas vejo o problema em duas perspetivas. Uma é a da saúde, há um conjunto de regras a cumprir, e não tenho nenhuma competência para dizer se devem estar 10 ou 20 alunos por sala. Outra é a do mundo da educação e da organização escolar. Cada escola é uma escola, em termos de espaço, dos seus professores e alunos, e há sempre formas de se poder aperfeiçoar e melhorar o sistema organizativo, horários, dimensão de turmas, tempos livres, etc. Mas não me parece que esta pandemia possa alterar significativamente o que já existe. Com uma exceção, como ninguém sabe qual será a sua duração e intensidade, vamos ter de nos preparar para o pior. As escolas vão ter de repensar o início do próximo ano letivo. E, na minha opinião, este terá de ter um tempo para consolidar os conhecimentos que foram agora lecionados. Mas isto é eminentemente na perspetiva escolar, se a situação da saúde se mantiver e se houver necessidade de prolongar o que se tem estado a fazer, então será muito útil para o início do ano.

N.C.: Eduardo, mas há uma coisa que é clara. Um sistema não melhora quando se introduzem mais restrições.

E.M.G. : Claro.

N.C.: Uma coisa é a otimização livre, outra a otimização com restrições. A pandemia não vai por ela criar condições para que se funcione melhor. Pelo contrário, está a restringir, tentamos adaptar-nos, mas há inconvenientes.

Esta experiência mostra que o papel do professor sair reforçado. Já imaginou isto sem os professores?

A escola não tem de ser agora repensada...
N.C.: Sabe. há sempre a ideia de que a escola vai revolucionarizar-se, que vai ser completamente diferente. Mas não.

E.M.G. : De forma alguma.

N.C.: Se formos ver a quantidade de ideias e de propostas que apareceram neste sentido e que não deram em nada, não sei se me dá vontade de rir ou de chorar.

E o papel do professor deve ser repensado?
N.C. : O papel do professor sai reforçado. O que esta situação demonstrou foi que o professor é indispensável. O que seria isto sem professores? O desastre que seria se alguém viesse dizer que chegou a altura de acabar com os professores. [Marçal Grilo ri-se.] O que isto mostra é que a relação entre professor e aluno é indispensável.

A conversa decorreu na semana em que os alunos do secundário regressaram às aulas e em que Tiago Brandão Rodrigues disse sentir-se orgulhoso como ministro da Educação, mas tem já motivos para isto?, perguntamos.

E.M.G. : Os ministros quando estão em funções têm várias componentes na sua atuação. Uma delas é emitir mensagens otimistas, mas acho que é muito cedo para se começar a dizer que Portugal fez uma coisa fantástica e que tudo está resolvido. Demos uma resposta surpreendente em várias áreas. Certamente que o ministro está satisfeito. Teria sido um desastre se metade dos alunos não tivessem comparecido às aulas online, mas compareceram. E se isso permitir a realização dos exames do 11.º e do 12.º anos, se em setembro começarmos as aulas com as escolas mais ou menos organizadas, então pode dizer que está muito orgulhoso.

N.C. : Concordo. Só sublinharia que os exames são muito importantes para os alunos, não só porque lhes permitem entrar na universidade, mas porque são uma meta a ultrapassar. Neste sentido, posso dizer que se se fizer estes exames será muito positivo para todos.

A parte política, não comenta?
N.C.: Não [ri-se].

Não estávamos em direto, mas também tínhamos tempos, embora mais dilatados, o que permitiu que se conversasse, divagasse, e se reforçasse o importante na perspetiva de cada um. O futuro dirá de sua justiça.

Ana Mafalda Inácio - 23 Maio 2020 — Diário de Notícias