Eugénio Rosa: “Quando entro na porta da ADSE sou gestor público, a minha ideologia fica lá fora”

O membro do Conselho Diretivo da ADSE eleito pelos representantes dos beneficiários, considera positiva a mudança da tutela do organismo para as mãos da ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão, que vê como uma pessoa “assertiva” e com “desejo de ação”. Porém, Eugénio Rosa, economista e antigo deputado do PCP, torce o nariz à ideia do Governo de transformar a ADSE numa mútua, situação que, garante, irá escancarar a porta de entrada “a grupos de interesses”

Eugénio Rosa denuncia que tem sido marginalizado dentro da direção da ADSE

O que pensa da mudança de tutela da ADSE para o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública?

Participei na reunião recente do Conselho Diretivo e de vários diretores de departamentos da ADSE com a ministra [Alexandra Leitão] que foi positiva. Foi uma reunião diferente, em que a ministra colocou várias questões e quis ouvir todos os intervenientes.

Como era antes?

Ultimamente não reuníamos com o Ministério da Saúde e as reuniões com o Ministério das Finanças [continua a ter a responsabilidade de alguns pelouros na ADSE] tinham-se reduzido aos membros do Conselho Diretivo. A tutela do Ministério da Saúde era uma tutela passiva, submetida totalmente ao Ministério das Finanças que decidia tudo, desde o Orçamento da ADSE, a que impunha cortes e cativações, até a abertura de concursos para recrutamentos de trabalhadores e de contratos para aquisição de ‘pacotes de milhares de horas de trabalho’ a empresas de trabalho temporário fixando mesmo o preço hora a pagar pela ADSE. Tudo isto era agravado pelo facto das representantes do Governo no Conselho Diretivo da ADSE, que estão em maioria, seguirem à risca as instruções do Ministério das Finanças mesmo quando representam um interferência na gestão diária da ADSE, que não está prevista na lei.

Pior não pode ficar?

Espero que com a passagem da tutela para o Ministério da Modernização Administração esta posição passiva e submissa em relação ao Ministério das Finanças termine e que os representantes dos beneficiários não continuem a ser marginalizados. Esta ministra é uma pessoa assertiva e com desejo de ação, quer que as coisas se façam sem adiamentos. E na ADSE o que faltam são decisões. Neste aspeto, esta mudança para a Modernização do Estado é positiva. Mas não concordo com a ideia da ministra de se transformar a ADSE numa mútua. Tenho uma experiência muito grande de mútuas em Portugal, nomeadamente na maior de todas, o Montepio, que tem sido destrutiva graças a um grupo que se apoderou da organização. A ADSE envolve valores muito grandes – com um orçamento de mais de 650 milhões de euros – e é, por isso, muito apetecível. Facilmente seria capturada por grupos de interesses, nomeadamente pelos grandes prestadores de saúde privados, que gostariam de ter uma direção mais ‘amigável’.

Teve indicação de que a mutualização é uma decisão fechada?

Não. Até porque o próprio Conselho Geral e de Supervisão da ADSE já se manifestou contra. É uma ideia em discussão, penso que não existirá uma decisão final.

Na sua opinião o modelo de gestão atual da ADSE não é o adequado. O que defende, então?

Que sejam atribuídos mais poderes aos representes dos beneficiários, dando poderes vinculativos ao Conselho Geral e de Supervisão – e não meramente consultivos como atualmente –, e que os representantes dos beneficiários no Conselho Diretivo sejam maioritários (hoje é apenas um, contra dois nomeados pelo Governo), embora o Governo tenha poder de veto em determinadas matérias. O Estado não pode ser desresponsabilizado porque a ADSE faz parte das relações laborais na Administração Pública. Ou seja, o Governo não pode virar as costas aos seus trabalhadores.

Entretanto terminou, em dezembro, o prazo do memorando de entendimento entre a ADSE e os cinco maiores grupos privados de saúde para a negociação das novas tabelas de preços para o regime convencionado e este processo continua por fechar.

Não se chegou a acordo. A maior parte dos prestadores não se pronunciou sobre as propostas apresentadas e não contribuíram para a negociação. Só um grande prestador, a José de Mello Saúde, deu o seu contributo e encaminhou para a ADSE uma proposta. Valorizo esse trabalho deles, mostraram consideração pela iniciativa da ADSE. Os outros apenas mandaram ofícios a dizerem que não estavam de acordo porque os preços estavam abaixo dos custos que têm de suportar.

O prazo foi prorrogado?

Sim, por mais três meses. Aprovei esse prolongamento como sinal de que a ADSE está empenhada em encontrar uma aproximação de posições. Ao fim destes três meses tem que se tomar uma decisão porque foram dadas as oportunidades necessárias para os privados apresentarem as suas propostas.

Acha que os privados vão aceitar as propostas da ADSE?

A informação que tenho tido dos prestadores é que eles consideram que os preços das propostas estão muito esmagados. Mas essa reação era previsível para quem está habituado a faturar o que quer. Defendo que se não houver acordo, a ADSE tem que decidir, até porque já passou muito tempo desde a publicação do Decreto-Lei 33/2018, de 15 de maio [lei de execução orçamental], que determinava que, no caso de não se chegar a acordo, se fixassem os preços máximos dos códigos que estão em aberto.

Denunciou a sua marginalização dentro do Conselho Diretivo e que foi afastado da elaboração das novas tabelas de preços para o regime convencionado. O que aconteceu?

As tabelas foram centralizada num único membro do Conselho Diretivo e, até abril de 2019, eu desconhecia os resultados do trabalho realizado. Nesse mês, depois de muita insistência, foram-me disponibilizadas umas tabelas e respetiva metodologia informando-me que eram os documentos finais a apresentar na audição dos prestadores. Eu analisei-as e procurei avaliar o seu impacto para a ADSE e para os prestadores e fiz algumas propostas de alteração. No entanto, em agosto, durante os onze dias que tive de férias, as tabelas foram bastante alteradas e enviadas aos prestadores na minha ausência. Foi um ato de deslealdade.

Quem é que lhe apresentou essas novas tabelas?

Quem centralizou o processo foi a Dra. Maria Eugénia Pires [que veio do Ministério da Saúde e antes esteve no Ministério das Finanças] e que está no Conselho Diretivo em representação do Governo. Apesar do ato de deslealdade e apesar de não ter participado na elaboração das tabelas quero que fique claro que, neste momento, estou com o restante Conselho Diretivo na implementação das tabelas e apoio a total adoção da tabela que foi enviada aos prestadores. Preocupa-me a situação de prolongamento indefinido desta situação negociação e audição com os prestadores privados.

Analisou-as? O que concluiu?

Há mudanças importantes em relação às propostas de tabelas que me tinham sido apresentadas em abril. Mas o mais importante, neste momento, para a ADSE é fixar preços máximos e estas tabelas vão permitir fazer isso nos medicamentos, próteses e procedimentos cirúrgicos (nestes últimos os únicos preços fixados são o do cirurgião e anestesista, ficando de fora os consumos e medicamentos) que continuam a ter preços abertos, ou seja, os prestadores podem faturar os preços que quiserem, o que contribui para o aumento da despesa da ADSE.

Porque é que o afastaram?

Toda a gente tem as suas convicções, mas quando entro na porta da ADSE sou gestor público, a minha ideologia fica lá fora. Estou na ADSE para defender os beneficiários e também para defender uma relação equilibrada e um tratamento igual de todos os prestadores. São os princípios que orientam a minha ação. Defender a sustentabilidade da ADSE, os direitos dos beneficiários e o tratamento igual dos prestadores, o que pressupõe uma atenção muito especial aos pequenos e médios prestadores que têm sido, nos últimos anos, marginalizados e esquecidos. É essa a minha missão. Concordo que os grandes grupos de saúde privados são importantes para a ADSE porque há atos médicos que só podem ser feitos nos grandes hospitais e se queremos prestar serviços de qualidade aos beneficiários, temos que ter acordos com eles. Mas temos que estabelecer uma relação mais equilibrada com estes grupos devido à elevada dependência da ADSE, o que lhes dá um enorme poder sobre este subsistema de saúde. Tem que se alargar a rede a pequenos e médios prestadores para se conseguir um maior equilíbrio e uma maior cobertura geográfica, para responder mais cabalmente às necessidades dos beneficiários.

Mas isso não tem acontecido.

Já apresentei várias propostas para esse alargamento, sem sucesso. Viajei pelo país a conhecer possíveis novos prestadores e há vários pedidos para celebrar convenções e não se avança. Era fundamental, por exemplo, fazer convenções com os hospitais das Misericórdias de Serpa, de Fafe e da Anadia e, apesar da minha insistência, ainda não consegui.

O Governo não tem apoiado a ADSE?

Não sei se é falta de apoio ou interferência a mais na gestão da ADSE, o que tem condicionado os seus representes a tomarem as posições anteriores. Não houve abertura de concursos para novos trabalhados indispensáveis ao funcionamento normal da ADSE (a ADSE tem 196 trabalhadores e precisa de 256) nem se promoveu o alargamento do número de beneficiários.

O Governo esteve empenhado em mostrar que a ADSE é insustentável?

Ao não alargar a ADSE criou, de facto, uma situação insustentável porque os beneficiários da ADSE estão a envelhecer e os seus custos com a saúde a aumentar cada vez mais. Não há rejuvenescimento dos beneficiários. O travão tem estado do lado do Ministério das Finanças.

Como é que as Finanças justificam não se avançar com o alargamento?

É um argumento absurdo. Há um estudo que foi feito no âmbito do Conselho Geral e de Supervisão que permitiu concluir que o alargamento aos trabalhadores com contratos individuais de trabalho (CIT) em funções públicas, cerca de 100 mil, prolongaria a sustentabilidade da ADSE. Mas as Finanças consideraram que a amostra deste estudo, embora fosse muito representativa (era constituída por 50% dos trabalhadores do universo), não abrangia a totalidade dos trabalhadores com CIT na função pública e que a DGAEP do Ministério das Finanças iria rapidamente dar esses dados. O certo é que essa informação não foi disponibilizada.

17.01.2020 Expresso - Ana Sofia Santos e Nuno Botelho