Morreu José Mário Branco, um dos nomes maiores da canção portuguesa

Mudam-se os Tempos….https://www.youtube.com/watch?v=tTTdJ5FM1mY

“É enorme. É um dos artistas mais importantes da música portuguesa do século XX e do século XXI”, diz Camané ao PÚBLICO. “Um homem da revolução”, recorda José Fanha. O músico tinha 77 anos.

Morreu José Mário Branco, um dos nomes maiores da canção portuguesa, confirmou ao PÚBLICO a sua editora Warner Portugal e o seu manager, Paulo Salgado. José Mário Branco tinha 77 anos e morreu durante a noite de segunda para terça-feira. O seu percurso tocou desde a música de intervenção e a canção de Abril até ao fado. “É enorme. É um dos artistas mais importantes da música portuguesa do século XX e do século XXI”, disse ao PÚBLICO o músico Camané, que José Mário Branco produziu. 

José Mário Monteiro Guedes Branco nasceu no Porto em 1942 e estudou História nas Universidades de Coimbra e do Porto, curso que nunca terminaria. Filho de professores, foi militante do Partido Comunista Português (PCP) e a ditadura obrigá-lo-ia a exilar-se em França, para onde viajou em 1963. Só voltaria a Portugal em 1974. É autor do emblemático álbum Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), de Margem de Certa Maneira (1973), A Mãe (1978), do duplo Ser solidário (1982), A Noite (1985), Correspondências (1990) ou Resistir é Vencer (2004). 

“Ele é um dos artistas mais importantes da música portuguesa, como produtor, como intérprete, como compositor, letrista”, enumera Camané ao telefone. “Tem uma importância e influência extrema tanto na música portuguesa mais moderna quanto na música mais antiga”, prossegue o cantor, que foi apresentado a José Mário Branco por Carlos do Carmo nos anos 1990, “na divulgação, na estética e nos vários estilos musicais. É um músico extraordinário, com bom gosto e que nunca abdicou dos valores e da qualidade em função de nada”. Cláudia Guerreiro, baixista dos Linda Martini, banda que é exemplo da influência de Branco nas gerações de músicos que se lhe seguiram, resume: “Não está só presente na música dele, mas na música de tanta gente”. 

“Para os Linda Martini foi das primeiras coisas em que pegámos para trabalhar, temos uma música que é o Partir para Ficar com um sample do FMI”, recorda a música ao PÚBLICO, que detalha a sua admiração pela arte de José Mário Branco em “pegar nas coisas populares e dar-lhes uma volta, torná-las intervenção, para falar de questões de trabalho, do povo, de pessoas em dificuldades”.

Na mente do fadista Camané está esta terça-feira, como tem estado nos últimos tempos, a canção Emigrantes da Quarta Dimensão (Carta a J.C.) (1990). E cita-a ao telefone com o PÚBLICO: “‘Dá-me uma ajuda, ó médico das almas/ Para escolher em que combate combater / Quem condeno eu à vida / Quem condeno eu à morte / Que me podes tu dizer / Encostado à árvore do tempo / Folhas vivas, folhas mortas, estações’… Estou-me a lembrar da música extraordinária para essa letra, é das que mais me impressionou dos últimos 20 anos da carreira do José Mário”. 

O contributo de José Mário Branco para a música popular portuguesa dos anos 1970 residia, como escrevia em 2017 o crítico do PÚBLICO Nuno Pacheco, nos “contornos do som e das ambiências” que gerariam “novos paradigmas, como a importância da encenação sonora, num tempo em que ela ameaçava estiolar na balada. Não se tratava de recorrer a guitarras eléctricas (o ié-ié já o fazia) ou a orquestrações (também as havia na chamada música ligeira), mas de usar recursos vindos de vários géneros musicais (o cancioneiro popular, a arte coral, a clássica, o rock, o jazz, a música francesa ou a anglo-saxónica) para dar à música portuguesa uma nova atmosfera. E foi isso que ele fez, e até hoje o distinguiu, não só nas suas próprias obras, mas em trabalhos de outros músicos, como José Afonso (Cantigas do Maio e Venham mais Cinco têm a sua marca).”

Apesar de ser um dos fundadores do Grupo de Acção Cultural — Vozes na Luta (GAC) com Fausto, Afonso Dias e Tino Flores e dele ter saído A Cantiga é Uma Arma (1975), entre muitos outros exemplos do trabalho mais político de José Mário Branco, o músico não gostava de ser reduzido a esse período criativo. Camané comenta como “essa música tinha tanta qualidade que ultrapassou tudo isso. Por um lado é evidente que se ligou muito à música de intervenção, mas a verdade é também que essa música estava muito para além do simples cantor de intervenção”.

José Fanha recorda a criação de GAC como algo de “extraordinário": “Ele juntou uma quantidade enorme de músicos, uns 30 ou 40, de imensa qualidade, que ele dirigiu, incentivou.” Para este poeta e escritor de literatura infanto-juvenil, que se assume “um bocadinho mais novo do que esta geração de músicos que revolucionaram a música no nosso país”, José Mário Branco “é um grandíssimo artista, um grandíssimo intelectual e um homem da revolução... um dos homens que ajudaram, na sua maneira, a que a revolução do 25 de Abril acontecesse, a que as coisas mudassem em Portugal. Talvez não da maneira como sonhávamos mas a verdade é que mudaram, a caminho da democracia.”

A notícia da morte de José Mário Branco “atingiu-nos como um trovão”, disse o guitarrista Rui Carvalho, aliás Filho da Mãe, esta terça-feira. O guitarrista descreve-o como “um herói. Um herói que nunca conheci”. Como outros portugueses nascidos nos anos 1970, cresceu a ouvir a música de José Mário Branco. “Está-me nos ossos​.” Mais do que o importantíssimo legado musical, o que lhe fica do músico é “o feitio – um feitio de estátua, uma espécie de farol, daquelas coisas que não mudam e cuja vontade parece que não quebra. Tem um valor poético que ultrapassa a política”. 

“É uma pessoa com uma emoção na voz fora do normal, que vem com uma força – o próprio ar dele, a austeridade, a ironia, o sarcasmo”, prossegue Rui Carvalho. “Alguém que parece que passou pelo deserto. Não estava à espera que se fosse embora. Não estava pronto para isto. Acho que ele não tinha esse direito, sinceramente.” 

José Mário Branco integrou a companhia de teatro A Comuna e foi produtor de músicos como Carlos do Carmo ou Amélia Muge. Colaborou em trabalhos de Ana Moura, fez arranjos para Sérgio Godinho e fez a direcção musical e composição para filmes de Paulo Rocha, Jorge Silva Melo, João Canijo ou Luís Galvão Teles. Sobre a sua vida escreveu-se o livro O Canto da Inquietação, de Octávio Fonseca Silva (ed. Mundo da Canção, 2000) e existe também o DVD Mudar de Vida, de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro (ed. Alambique, 2016).

Joana Amaral Cardoso e Maria Paula Barreiros

19 de Novembro de 2019, Público

https://www.youtube.com/watch?v=tTTdJ5FM1mY