Governo poupa €229 milhões com aumento da função pública abaixo da inflação de 2020

Mário Centeno tem vindo a avisar que há margem para aumentos na função pública em 2020, mas que é pequena

O Governo não confirma nem desmente, os sindicatos “recusam-se a acreditar” e a polémica está lançada. A notícia desta segunda-feira estourou como uma bomba no seio da Administração Pública. O “Jornal de Negócios“ avançou que o Governo se prepara para usar a inflação deste ano – e não a de 2020 – como referência para subir os vencimentos na Administração Pública a partir de janeiro, rompendo a tradição negocial com os sindicatos da função pública. Parece uma pequena alteração mas, a confirmar-se, pode fazer toda a diferença nos aumentos salariais da função pública no próximo ano. E, também, no impacto para os cofres públicos. É que, segundo as contas do Expresso, o Ministério das Finanças poupa mais de 200 milhões de euros com esta medida.

A explicação é simples. A taxa de inflação média deste ano está nos 0,4% segundo o último número disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). É certo que o valor se refere a outubro, ainda pode alterar-se até ao final do ano, mas não são de esperar grandes oscilações. Já a previsão do Executivo para o incremento geral dos preços no próximo ano é de 1,6% (número inscrito no esboço orçamental enviado para Bruxelas em outubro). Isto significa que se fosse este dado a ser tomado como referencial – como era tradição na Administração Pública – os funcionários públicos veriam os seus vencimentos engordar de forma muito mais expressiva. Mais expressivo seria também o incremento com as despesas de pessoal na Administração Pública.

Vamos por partes. Este ano, segundo as projeções do Programa de Estabilidade 2019-2023, publicado em abril, as despesas com pessoal na Administração Pública vão chegar a 22,45 mil milhões de euros. Um valor que engloba, além das remunerações base, o pagamento de horas extraordinárias e subsídios diversos. Ora os aumentos salariais incidem apenas sobre a remuneração-base, que, segundo os cálculos do Expresso a partir dos dados da síntese estatística do emprego público, representam cerca de 85% dessas despesas com pessoal. Tomando como base essa premissa, um acréscimo de 1,6% nos vencimentos (a previsão para a inflação em 2020) significa um aumento da despesa pública com pessoal de 305 milhões de euros, em termos brutos (ou seja, sem levar em conta o aumento da receita pública por via de maiores contribuições para a Segurança Social e ao nível do IRS). Um valor que fica pelos 76 milhões de euros se os aumentos ficarem pelos 0,4% (inflação de 2019). Tradução: uma poupança para o Ministério das Finanças de 229 milhões de euros.

As contas de Centeno

Depois de o ministro das Finanças, Mário Centeno, já ter aberto a porta à subida de vencimentos na função pública, em linha com a inflação, o Negócios avança que a hipótese de um aumento tendo por referência a subida de preços no próximo ano está afastada. Tudo porque o valor de 1,6% – mesmo que ainda venha a ser revisto ligeiramente em baixa – é considerado incomportável pelo Ministério das Finanças.

Contactado pelo Expresso, o Ministério das Finanças declinou comentar o tema. Também o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, que neste segundo Governo de António Costa tem a tutela sobre a função Pública, não respondeu às perguntas do Expresso, afirmando que “estando em curso o processo orçamental, não é oportuno fazer comentários”.

Certo é que Mário Centeno tem vindo a repetir que as contas públicas já estão sob pressão como resultado do descongelamento gradual da progressão na carreira dos trabalhadores do Estado. Um impacto que só será completamente repercutido a partir do próximo ano, devido ao faseamento do impacto remuneratório do descongelamento das carreiras, e que leva a equipa das Finanças a manter controlo apertado sobre os aumentos salariais da função pública em 2020.

Depois de já ter assumido publicamente a intenção de aumentar os vencimentos dos trabalhadores do Estado em função da inflação, Mário Centeno já vincou que a margem é pequena. Na altura da apresentação do cenário macroeconómico que serviu de base ao programa com que o PS concorreu às eleições legislativas, o ministro das Finanças afirmou que “a margem que existe para 2020, após paga a prestação da recuperação do congelamento das carreiras, é suficiente para aumentar os salários à margem da inflação que hoje se observa”. O que remete para os referidos 0,4%. E só a partir de 2021 o Executivo conta ter uma margem maior para subir vencimentos na função pública.

Se tomarmos em conta que o programa de Governo prevê um aumento anual médio em torno dos 3% para a massa salarial na Administração Pública, isso significa mais 674 milhões de euros em 2020, tomando como ponto de partida o referido valor de 22,45 mil milhões de euros previstos no Programa de Estabilidade 2019-2023 para as despesas com pessoal. O grosso desta fatia está, contudo, reservado a pagar progressões e promoções. São 527 milhões de euros, segundo a mesma fonte. Resultado: sobram apenas 147 milhões de euros. Um número que representa apenas cerca de metade do necessário para pagar aumentos de 1,6% e que, além disso, terão ainda de chegar para contratar mais trabalhadores, em sectores depauperados de recursos humanos, como a Saúde, ou a Segurança Social.

Sindicatos incrédulos, dizem que número é “insulto”

Para já, a posição dos sindicatos da Administração Pública é de expectativa. Ainda sem qualquer indicação da parte da equipa da ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão – as negociações sobre o próximo ano devem arrancar ainda este mês – “recusam-se a acreditar” que a proposta do Governo para os aumentos no próximo ano seja de apenas 0,4%. “Estamos à espera que o Governo nos diga o que pretende fazer com a Administração Pública”, diz ao Expresso Helena Rodrigues, presidente do STE. Lembrando que as tabelas salariais da função pública estão congeladas há uma década – o último aumento aconteceu em 2009, quando o Governo de José Sócrates brindou a função pública com um aumento de 2,9% –, Helena Rodrigues defende que “modernizar a Administração Pública e pôr os serviços a funcionar bem não se faz com salários baixos, ao nível de 2010”.

De então para cá, com os salários congelados, os trabalhadores do Estado perderam 11,8% no seu poder de compra devido ao impacto da inflação. Um número que, contudo, não considera o efeito do descongelamento das progressões desde o início de 2018, que levou a que muitos funcionários públicos tenham visto engrossar o salário mensal desde então.

Por isso, um aumento de 0,4% “não é aceitável”, diz Helena Rodrigues, considerando, contudo, não lhe parecer “que venha a ser um proposta real do Governo”. “Vamos esperar pelo processo negocial”, acrescenta.

José Abraão, dirigente da FESAP, aponta no mesmo sentido: “Não quero acreditar que o Governo venha com uma proposta com base nesses valores”, afirmou ao Expresso. E garantiu: “Esperamos uma proposta séria do Governo”. Ainda assim, José Abraão foi avançando que um valor de 0,4% seria “inaceitável, incompreensível e uma provocação aos trabalhadores ao fim de uma década de congelamento salarial”. E lembra que, em muitos casos, isso significaria “um aumento de apenas um euro ou dois por mês”. Ou seja, “não seria compreensível depois do que disse o primeiro-ministro sobre a valorização dos salários médios em Portugal”. José Abraão vai mais longe: “Seria empurrar os funcionários públicos para protestar na rua.”

A título de exemplo, com a remuneração-base média na Administração Pública nos 1482,5 euros mensais brutos, segundo os últimos dados da síntese estatística do emprego público, um incremento de 0,4% significaria mais 5,9 euros por mês brutos. Já uma subida dos salários em 1,6%, em linha com a previsão para a inflação prevista para o próximo ano, resultaria em mais 23,7 euros brutos mensais.

Ana Avoila, dirigente da Frente Comum, fala mesmo em “insulto para os trabalhadores”, caso se confirme uma proposta de aumento na ordem dos 0,4%. E deixa um aviso: “É um mau sinal para o sector privado”.

Sónia M. Lourenço