O relato de uma “sentença histórica” em Portugal: a vitória de Cristina Tavares

Whatsapp Cristina Tavares, trabalhadora despedida pela empresa Fernando Couto Cortiças

Foi despedida duas vezes. Recorreu à justiça. Venceu a batalha - a guerra logo se vê, porque há um recurso e outro processo em marcha. Uma corticeira da Feira foi condenada a pagar mais de 30 mil euros por assédio moral à sua funcionária Cristina Tavares. O advogado que a representa não tem dúvidas: isto é histórico.

Outro advogado ouvido pelo Expresso diz que o assédio moral é usado como “método de gestão” pelas empresas. O presidente da CIP - Confederação Empresarial de Portugal, refuta completamente essa ideia.

Esta é a história de Cristina Tavares

Os números são enganadores, dizem os especialistas em direito do trabalho. Mas podemos começar por aí: em 2017 foram aplicadas 24 infrações por assédio moral, no ano anterior registaram-se 18 contra-ordenações e em 2015 um total de 12. Se parece pouco é apenas porque este é um problema “invisível”, considera o advogado Nuno Cerejeira Namora, para quem o assédio moral “é como um iceberg”. “Apenas vemos uma ponta, o mais grave está debaixo de água.”

O caso de Cristina Tavares contribuiu para trazer o tema à superfície. Uma corticeira de Santa Santa Maria da Feira, que já despediu a operária duas vezes, foi condenada esta segunda-feira ao pagamento de uma coima de 31.110 euros, precisamente por assédio moral. A sentença confirma o valor que tinha sido aplicado pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) à Fernando Couto, a corticeira em causa. Mas não é só o valor da multa que confere ao processo um caráter de exceção.

“Estamos perante uma sentença histórica”, diz ao Expresso Filipe Soares Pereira, advogado do Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte (SOCN) que se constitui como assistente do processo, sublinhando que esta “é uma decisão judicial que vem suportar uma decisão administrativa” e que passa uma mensagem importante para os trabalhadores em situações parecidas e para as empresas: “Apesar da dificuldade da prova em casos desta natureza, é possível”.

Nem todos têm a coragem de Cristina Tavares, concorda Nuno Cerejeira Namora, advogado que reconhece avançar muitas vezes para acordo quando deteta que os seus clientes chegam ao seu gabinete já demasiado fragilizados para enfrentarem uma batalha legal. “É diabólico quando se pensa que o trabalho, enquanto foco da nossa realização e rendimento, se pode tornar no nosso maior problema”.

Um estudo publicado em 2016 pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) concluiu que cerca de um sexto da população ativa de Portugal Continental (excluindo o setor primário) já sofreu pelo menos uma vez ao longo da sua carreira profissional uma situação de assédio moral no local de trabalho. A pesquisa referia como as situações mais frequentes a intimidação (cerca de 48%) e a perseguição profissional (46,5%). Não serão as únicas.

Assédio moral como “método de gestão”

Como especialista em direito do trabalho, Nuno Cerejeira Namora habituou-se a reconhecer outras situações de assédio no trabalho e, mais do que isso, não duvida em afirmar que os comportamentos de assédio não obedecem em exclusivo à vontade de “levar o trabalhador a despedir-se ou a aceitar mais facilmente um acordo para sair da empresa”. “É muito comum ver o assédio moral usado como método de gestão” em empresas “que acreditam que trazer os trabalhadores no ‘fio da navalha’, em stress, os torna mais produtivos.”

António Saraiva, presidente da CIP - Confederação Empresarial de Portugal, não podia estar mais em desacordo. “Refuto essa ideia completamente”. Pelo contrário, diz, “cada vez mais temos gestores conscientes de que é importante os seus trabalhadores estarem felizes e motivados”. “O próprio rejuvenescimento dos nossos gestores e as escolas de que o país se orgulha de ter têm contribuído para essa evolução”, acrescenta.

Por sua vez, Cerejeira Namora afirma que é um engano imaginar que as vítimas correspondem ao perfil dos trabalhadores mais jovens ou mais idosos, com vínculos precários. “É um problema transversal”, aponta, remetendo-se à tese que escreveu sobre a matéria: “Encontrei uma enorme incidência em hospitais, afetando médicos, e também é frequente os alvos serem quadros superiores, contratados com altas expectativas. Quando de alguma forma os empregadores sentem que os resultados não correspondem, vão pressionando, retirando regalias, numa tentativa de enfraquecer estes trabalhadores”.

O advogado acrescenta que nos últimos 10 ou 20 anos o cenário mudou, com as formas de assédio a ‘sofisticarem-se’ no pior sentido: “São agora praticadas com recurso a atos legais, como a aplicação consecutiva de processos disciplinares, por exemplo”, embora Nuno Cerejeira Namora reconheça também que o facto de a figura do assédio moral ser mais falada significa, por outro lado, ter mais gente a querer aplicá-la. “Por ignorância, ao não saber exatamente o que define; ou por abuso, na tentativa de obter maiores indemnizações”, conclui.

Sentença desta segunda-feira não encerra o caso

De volta a Cristina Tavares, o advogado do SOCN envolvido no processo vê como “determinante” o papel do sindicato, ao fazer-se representar. A isto Nuno Cerejeira Namora junta a atenção dada ao caso pela comunicação social e o facto de existirem relatórios de ações inspetivas da ACT a atestarem o testemunho da trabalhadora. Já António Saraiva alerta para o risco de fazer leituras que favoreçam “generalizações”. “Não o devemos fazer. Tanto quanto sei, essa não é a realidade do sector, onde a esmagadora maioria das empresas tem boas práticas”, diz o presidente da CIP. “Se neste caso houve comportamentos indevidos, e a justiça terá julgado e entendido que sim, felizmente há instrumentos legais para o penalizar.”

A sentença desta segunda-feira não encerra, contudo, o caso. Em comunicado, a corticeira Fernando Couto adiantou que vai recorrer para a Relação. “Vamos analisar a decisão e interpor recurso, pois não nos conformamos com a injustiça.”

Filipe Soares Pereira está confiante. O advogado elogia “a capacidade de apreciação crítica” demonstrada pela juíza e a forma sustentada e “bem fundamentada” da sentença.

Como tudo aconteceu

Cristina Tavares foi despedida em janeiro de 2017, alegadamente por ter exercido os seus direitos de maternidade e de assistência à família, mas o tribunal considerou o despedimento ilegal e determinou a sua reintegração na empresa.

Em janeiro deste ano, a empresa voltou a despedi-la acusando-a de difamação, depois de ter sido multada pela ACT, que verificou no local que tinham sido atribuídas à trabalhadora tarefas improdutivas, carregando e descarregando os mesmos sacos de rolhas de cortiça durante vários meses.

A situação de Cristina Tavares deu origem a duas contraordenações da ACT à Fernando Couto Cortiças, uma que resultou numa coima de 31.110 euros, por assédio moral à operária, e outra que levou a uma coima de 6000 euros, por irregularidades relativas à segurança e à saúde da funcionária no local de trabalho.

No próximo dia 29 vai começar a ser julgado no Tribunal da Feira a ação intentada pela empresa a contestar a segunda multa.

Filipe Soares Pereira considera também que a decisão do tribunal da Feira, agora conhecida, terá influência no processo de impugnação do despedimento da trabalhadora, que vai começar a ser julgado em junho. “Grande parte dos factos que estão na defesa da autora estão aqui neste processo e isso vai ter que ser tido em conta, naturalmente.”

Mafalda Ganhão Jornalista - 27.05.2019 Expresso