Chico Buarque, um Prémio Camões com mensagem artística e política

O prémio literário mais importante do universo da língua portuguesa distinguiu esta terça-feira, na sua 31.ª edição, um ícone da música popular brasileira a que faltava a definitiva consagração como escritor.

“Não estamos a premiar o músico. Estamos a premiar o homem da literatura”, disse ao PÚBLICO Manuel Frias Martins, o português que presidiu à reunião do júri que esta terça-feira decidiu atribuir a Chico Buarque o Prémio Camões. “Quando falamos de Chico Buarque esquecemos muitas vezes que estamos perante um escritor de grande qualidade na poesia, um dramaturgo de grande qualidade e, sobretudo um romancista de grande qualidade”, continuou o professor da Faculdade de Letras de Lisboa, sublinhando a unanimidade do júri à volta do criador da Ópera do Malandro e de Circo Místico, o autor dos romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009)O Irmão Alemão (2014), letrista e compositor com 49 discos gravados, argumentista e co-argumentista em cinco filmes. “A obra dele é transversal a vários géneros literários e reconhecida em todos os países de língua portuguesa por várias gerações”, sublinhou ainda Frias Martins, minutos depois do fim da reunião do júri na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro.

Francisco Buarque de Hollanda, conhecido simplesmente como Chico Buarque, sucede assim ao cabo-verdiano Germano de Almeida. E o anúncio de que o brasileiro é o vencedor da 31.ª edição do maior prémio da criação em língua portuguesa suscita múltiplas leituras. A primeira e óbvia é a comparação com Bob Dylan, vencedor do Nobel da Literatura em 2016. “Na reunião, foi referido o exemplo do Dylan, mas isso não pesou”, garante Frias Martins. Clara Rowland, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que também fez parte do júri, reforça essa ideia, acrescentando que a decisão de dar o premio ao músico e escritor brasileiro não só foi unânime como “entusiástica”, e justifica: “O que pesou foi o reconhecimento da importância fundamental do Chico. É uma das poucas figuras comuns a todo o espaço da língua portuguesa. Poucos na literatura têm o grau de reconhecimento que o Chico tem. Pareceu-nos ainda que um nome como o Chico traz muita vitalidade ao Prémio Camões.”

Aos 74 anos, a poucas semanas de fazer 75, Chico Buarque, carioca, filho do historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, músico, compositor, cantor, actor, romancista, dramaturgo, vê-se coroado. E quantas frases escritas por ele ocorrem no momento de se dizer que é o Prémio Camões 2019? “Me segura, malandro”, “e me jurava o Diabo que Deus existia”... Mas este é também o homem que aos 22 anos descobriu que tinha um irmão alemão, e escreveu um livro sobre isso. Nele, lê-se: “Se cunhássemos nossas cabeças eu e meu irmão, cada qual numa face de uma moeda, e se girássemos essa moeda com um peteleco forte, poderíamos vislumbrar a cabeça do meu pai e a cabeça da minha mãe quase simultaneamente. Já com a moeda em repouso tornamos a ser duas cabeças tão dessemelhantes que ninguém nos imagina irmãos. Só quem frequentasse muito a nossa casa, ou estudasse uma rara foto da família reunida, notaria que nós dois não somos propriamente opostos, e sim complementares.”  

Era, até 2014, o dado biográfico menos conhecido de Chico Buarque, o homem tímido e reservado, apaixonado por futebol, activista político, ex-exilado, um dos nomes mais respeitados da Música Popular Brasileira.

 “Uma voz ouvida no Brasil”

O comunicado distribuído esta terça-feira é muito sucinto na justificação de dar a este homem o Prémio Camões. Além da abrangência da obra do vencedor, salienta o modo relevante como despertou muito cedo para a escrita e a dimensão poética das suas letras, das suas peças de teatro, da sua ficção. Ana Paula Tavares, angolana, escritora, professora na Faculdade de Letras de Lisboa e também parte do júri desta edição, adiantou ao PÚBLICO mais detalhes: “Este é um prémio da língua, e se há obra da língua portuguesa que atravessa fronteiras é a dele. Poesia, romance, canções. Todas as gerações da língua portuguesa têm uma memória construída que passa pelo Chico.” Ainda do júri, o moçambicano Nataniel Ngomane salienta justamente esta faceta de Chico Buarque. “São tantas as referências. A começar pela famosa Ópera do Malandro, tantos textos que encantaram na língua portuguesa. Nós crescemos a ouvir as letras do Chico.” O professor da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, termina a dizer: “Os meus pais ouviam as letras do Chico, a minha geração cresceu a ouvir o Chico e os meus filhos ouvem o Chico.”

Antonio Cicero, poeta e ensaísta brasileiro, era um homem feliz no fim da reunião, cujo desenrolar descreveu ao PÚBLICO: “Como estamos aqui no Brasil, demos primeiro a palavra aos nossos convidados. Foram eles os primeiros a fazer as propostas; nós ouvíamos e apresentávamos as nossas. O nome do Chico foi apresentado pelos portugueses e por uma angolana e gerou logo muito entusiasmo.” Cícero também ressalta a multiplicidade e a abrangência do Prémio Camões 2019. “A obra do Chico é reconhecida pelos romances, pela poesia que se encontra nas canções que ele fez, uma poesia de alto nível. Atravessou fronteiras.”

Nenhum dos membros do júri, de que faziam ainda parte Antonio Hohlfeldt, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sublinhou a leitura política que se pode fazer desta distinção. Mas foi isso mesmo que destacou Clara Capitão, a responsável pela Companhia das Letras, que publica o autor em Portugal desde O Irmão Alemão. “Foi uma enorme surpresa. Não esperava. Por vários motivos, um dos quais foi a discussão que se iniciou com o Nobel a Bob Dylan sobre se um letrista deve receber um prémio literário. Mas o Chico é mais do que um letrista. Como se sabe, os romances dele no Brasil ganharam muitos prémios, só que existe sempre um certo preconceito em relação a artistas que se aventuram em várias artes.”

O Prémio Camões, diz, “é a confirmação que lhe faltava como escritor”: “Ele é um criador modesto e humilde, nele pode funcionar como um incentivo para continuar a escrever.” E Clara Capitão não consegue “deixar de ver uma mensagem política” nesta decisão do júri: “É uma voz ouvida na opinião pública do Brasil, numa altura em que a criação artística está a ser tão atacada. Este prémio é também uma mensagem para a opinião pública brasileira.”

"Vai em frente"

Chico Buarque, que começou a sua carreira como músico e compositor, escreveu em 1974 a novela Fazenda Modelo e publicou Estorvo em 1991. Numa entrevista ao PÚBLICO, em 2009, contou que o primeiro romance, Estorvo, tinha sido escrito por estímulo, “quase provocação de Rubem Fonseca e de Luiz  Schwarcz”, o seu editor da Companhia das Letras. “Comecei a escrever, tinha dez páginas, não tinha ideia da minha capacidade de escrever um romance. Então, submeti o início do livro ao editor. Que me disse: ‘Vai em frente’. Mostrei ao Rubem Fonseca uma coisa ou outra durante a escrita. Quando terminei Estorvo, mandei para o Rubem Fonseca que fez algumas observações. Umas eu aceitei, outras não. Houve essa partilha. Já depois, não. Os livros entrego prontos. Existe um certo pudor.”

Esta terça-feira, o seu editor brasileiro, Luiz Schwarcz, escreveu em comunicado: “O Prémio Camões sabiamente julga qualidade e não quantidade. Dessa forma, soube premiar no passado, com toda justiça, Raduan Nassar e agora Chico Buarque. São autores afins, que trabalham horas a fio cada frase que um dia virá a ser impressa. O prémio deste ano vai para cinco romances magistrais da língua portuguesa e para um artista que usa em vários campos (música, teatro e literatura) a liberdade para a melhor arte e vice-versa.”

Chico Buarque, que não se encontra no Brasil, já reagiu ao prémio: “Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar”, disse ao PÚBLICO o seu assessor de comunicação, Mário Canivello.

Em 2010, quando recebeu o Portugal Telecom de Literatura salientou que​ trabalha com a língua portuguesa, “o nosso idioma”, e que apesar de muitas vezes “não perceber o que os portugueses estão a falar” considerou aquele prémio “um abraço a Portugal também e aos demais países da língua portuguesa”.

Um ano antes dizia ao PÚBLICO que quando os seus livros vão para as livrarias, ele já se desligou deles. “Não é que não goste mais do livro, eu me desinteressei. Existe quase uma repulsa. Não quero saber. É uma defesa do criador porque se ele achar que já fez tudo, fez o melhor que podia fazer, não faz mais nada. Então me despojo do livro como de qualquer canção. Vou fazer outra melhor.” 

Explicava ainda : “Tenho que estar livre do que se fala de mim. Se ficar pensando nisso, fico maluco. Eu não fico procurando, não vou na Internet saber o que se fala. Não é falta de vaidade. Vaidosos todos somos, acho óptimo que haja a Festa Literária de Paraty para os escritores levarem a vaidade a passear. Porque a vaidade de escritor é fechada dentro do quarto [risos]. Agora no meu caso, não. A minha vaidade já está bastante rodada.”

Treze brasileiros, 12 portugueses

Criado por Portugal e pelo Brasil em 1989, o Prémio Camões tem um valor de 100 mil euros e é o mais importante prémio literário no universo da língua portuguesa.

Com a atribuição do prémio a Manuel Alegre, em 2017, Portugal chegou a igualar o Brasil no número de escritores galardoados, 12: depois de ter inaugurado a contagem com Miguel Torga (1989), o país viu serem contemplados Vergílio Ferreira (1992), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Eugénio de Andrade (2001), Maria Velho da Costa (2002), Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007), Manuel António Pina (2011), Hélia Correia (2015) e Manuel Alegre (2017).

Pelo Brasil, receberam já o Camões João Cabral de Melo Neto, em 1990, Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012), Alberto da Costa e Silva (2014), Raduan Nassar (2016) e, agora, Chico Buarque, o 13.º escritor brasileiro a receber a distinção.

O Prémio Camões foi pela primeira vez atribuído a um escritor africano quando, em 1991, a escolha do júri recaiu sobre o poeta moçambicano José Craveirinha. Seis anos mais tarde foi a vez de Pepetela assinar a estreia de Angola, país que voltaria a ter a sua literatura reconhecida em 2006 com a obra de Luandino Vieira, que recusou o prémio. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, em 2013 o romancista moçambicano Mia Couto e no ano passado o romancista e contista cabo-verdiano Germano Almeida.

Isabel Lucas - 21 de Maio de 2019, Público