Nova SBE, regime fundacional e empresarialização do Ensino Superior

 Lamentavelmente, como se percebe pela tentativa de limitar a intervenção pública de Susana Peralta, a promiscuidade entre a missão pública do Ensino Superior e os interesses empresariais privados gera uma situação nebulosa e mal definida que em nada contribui para dignificar o Ensino Superior.

A recente polémica em torno do modo como Susana Peralta, professora de economia na Nova SBE, assina os seus artigos de opinião na imprensa escrita, trouxe para cima da mesa algumas questões importantes sobre o Ensino Superior português. Por um lado, o facto de o Conselho Restrito de Catedráticos da Nova SBE ser constituído por 12 homens e apenas duas mulheres é sintomático do modo como a desigualdade de género continua a reproduzir-se e a perpetuar-se nas Instituições de Ensino Superior. Na melhor das hipóteses, são tímidas as iniciativas que têm sido dadas para ultrapassar um problema que é estrutural, sistémico e cujos efeitos são, quase sempre, insidiosamente subtis. Por outro lado, reabre-se também um campo para aprofundar a discussão sobre os fundamentos políticos da economia enquanto ciência. Têm sido dados passos importantes neste domínio, com o desenvolvimento recente de projetos de investigação no domínio da história do pensamento económico em Portugal, como o projeto RECON – que ciência económica se faz em Portugal? Um estudo da investigação portuguesa recente em economia (1980 à atualidade), cujos resultados parecem sugerir que esta instituição ocupou sempre um lugar central na difusão das ideias neoliberais, existindo pouco espaço para a pluralidade epistemológica.

Sendo certo que estes dois aspetos são muito importantes e merecedores de atenção por parte da comunidade académica, pois comprometem a própria ideia de Universidade, este incidente permite também voltar a questionar aquele que é, porventura, o mais problemático elemento constitutivo do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), entrado em vigor em 2007, designadamente, a possibilidade de transformação das Instituições de Ensino Superior Públicas em fundações públicas com regime de direito privado. Esta inovação jurídica, que hoje vigora nas Universidades de Aveiro, Porto, Minho e Nova de Lisboa, no ISCTE-IUL e, mais recentemente, no Instituto Politécnico do Cávado e Ave, para além de agravar os inúmeros aspetos negativos do RJIES, condiciona ainda mais a participação democrática na gestão das instituições e aproxima-as das lógicas de funcionamento e dos interesses de mercado. Muito provavelmente, a Nova SBE é a Instituição de Ensino Superior que, em Portugal, mais a sério tem levado o seu projeto de empresarialização, como sugere o facto de Daniel Traça, diretor da Nova SBE, acumular este cargo com o de administrador não executivo do Santander. Registe-se que também este professor catedrático assina frequentemente os seus artigos de opinião como dean da Nova SBE, não sendo conhecidas quaisquer tomadas de posição equivalentes àquela que agora foi tornada pública.

Lamentavelmente, como se percebe pela tentativa de limitar a intervenção pública de Susana Peralta, a promiscuidade entre a missão pública do Ensino Superior e os interesses empresariais privados gera uma situação nebulosa e mal definida que em nada contribui para dignificar o Ensino Superior. Pelo contrário, o que resulta claro é que, ao criar um ambiente institucional propício a uma maior limitação à liberdade de pensamento em que quaisquer afrontas podem ser objeto de censura, o regime fundacional contribui para a degradação do Ensino Superior. Aparentemente, na Nova SBE, quaisquer desvios ao pensamento único, ideia que, em si mesma, é a antítese daquilo que historicamente tem sido a Universidade enquanto lugar de criação e difusão de conhecimento, do erro e da experimentação verdadeiramente livres, pode pagar-se caro. Haverá melhor demonstração dos perigos para a liberdade e a integridade académicas que encerra o regime fundacional?

Se existe alguma lição a retirar deste incidente é a de que é preciso repensar o modelo de funcionamento das Instituições de Ensino Superior, tornando-o mais democrático, participado e transparente, e que isso passa, inevitavelmente, pela revisão profunda do RJIES e pela extinção da figura da fundação pública de direito privado

Com base numa perspetiva, então consensual, de que as Instituições de Ensino Superior precisariam de maior agilidade na gestão dos recursos financeiros, patrimoniais e humanos, bem como de maior autonomia, em vez de se darem passos com vista à generalização destas hipotéticas vantagens por todas as instituições do sistema, criou-se uma aberração jurídica. Com efeito, o regime fundacional foi uma opção eminentemente ideológica, assente no falacioso pressuposto de que a gestão privada e empresarial tem maior qualidade do que a gestão pública. Só um observador muito desatento ou puerilmente ingénuo poderá continuar a insistir nessa enviesada leitura, depois da crise económico-financeira e do colapso da banca nacional, que apenas foi “salva” pelo dinheiro dos contribuintes. Efetivamente, as fundações têm servido para acelerar o processo de mercantilização do Ensino Superior, transpondo para o interior das Instituições aquilo que de pior existe no mundo empresarial, designadamente, a opacidade e o abuso de poder. Em vez de se aprofundar e desenvolver um ambiente académico assente na cooperação entre pares, numa lógica de participação democrática, transparente e substantiva, assiste-se a uma intensificação da competição exacerbada como regra e da erosão de uma certa ideia de Universidade que, não se encapsulando sobre si própria, não se limita a acompanhar de forma acrítica as orientações e os interesses dos mercados.

Se existe alguma lição a retirar deste incidente é a de que é preciso repensar o modelo de funcionamento das Instituições de Ensino Superior, tornando-o mais democrático, participado e transparente, e que isso passa, inevitavelmente, pela revisão profunda do RJIES e pela extinção da figura da fundação pública de direito privado. A sua preservação, expansão e aprofundamento, como defende a OCDE, apenas terá como resultado uma maior fragilização dos docentes, tanto ao nível das suas condições de trabalho, aspeto que aqui não aflorámos, como da sua liberdade de expressão, como ficámos a saber com a oportuna divulgação pública daquilo que sucedeu a Susana Peralta na Nova SBE.

André CarmoOpinião 7 de Julho de 2020 Público