O ensino superior, a pandemia e as propinas de sempre

Há um risco sério de que o sistema de ensino superior se torne mais desigual, que o seu acesso seja menos democrático e que aqueles que menos rendimentos têm tenham mais dificuldade em prosseguir os seus estudos.

Portugal é ainda um país onde o nível médio de qualificações está abaixo do resto da Europa, muito longe da realidade do país de “doutores e engenheiros” tantas vezes repetida. Este facto é dos que mais contribui para o nosso atraso estrutural, não obstante o caminho que tem vindo a ser feito ao longo das últimas 4 décadas de democracia.

Num país parco em recursos naturais, é pelo aumento das qualificações que melhor nos poderemos preparar para as transformações globais do mundo em que vivemos, promovendo simultaneamente uma sociedade com maior igualdade de oportunidades e com maiores índices de justiça social.

Ao contrário do que muitas vezes se quer fazer crer, Portugal é um dos países da Europa onde o valor dapropinas cobradas pelas instituições públicas de ensino superior é mais elevado. Em grande parte destes, o caminho seguido nos últimos anos tem sido o de reduzir estes valores ou, mesmo, o da sua abolição. Por cá, já com a governação do Partido Socialista, o valor máximo das propinas no primeiro ciclo do ensino superior foi também reduzido, naquilo que se espera que seja o início de um caminho que conduza à propina zero.

A pandemia de covid-19 trouxe mudanças em diversos aspetos da nossa vida coletiva, aumentou o grau de incerteza no futuro e mudou significativamente o quadro do ensino em Portugal, não sendo o ensino superior naturalmente uma exceção.

Ao longo dos últimos meses, a maioria das instituições de ensino superior em Portugal suspenderam as suas atividades presenciais o que, invariavelmente, resultou numa diminuição dos seus custos operacionais.

Durante este tempo, muitas foram as famílias de estudantes que se viram forçados a manter grande parte das despesas associadas à frequência do ensino superior (como rendas de habitação, no caso dos alunos deslocados), pese embora muitas delas tenham visto os seus rendimentos reduzidos, como consequência da inevitável crise económica resultante da crise sanitária e apesar das medidas tomadas pelo governo para minimizar estes impactos.

Todos sabemos que a condição económica das famílias é fundamental para a decisão de ingressar, ou não, no ensino superior (e para lá permanecer) e que a deterioração da situação económica de muitas famílias pode conduzir a um aumento do abandono escolar, que penalizará obviamente aqueles que provêm de famílias com menores rendimentos.

Ainda assim, nenhuma das instituições de ensino superior se mostrou disponível para diminuir, parcial ou totalmente, o valor das propinas cobradas aos seus alunos.

Perante este cenário, caberia ao Estado garantir uma diminuição extraordinária do custo de frequência no ensino superior. No contexto que atravessamos, e naquele que se prevê que vamos atravessar nos próximos anos, faz todo o sentido aprofundar e acelerar o caminho da redução do valor das propinas no nosso país, aumentando assim o rendimento disponível das famílias com estudantes no ensino superior e não pondo em causa a sua continuidade académica.

Por outro lado, uma das apostas que o país terá que fazer, preparando o relançamento da economia no pós-covid, será na requalificação, o que exigirá um reforço na aposta em cursos que possam capacitar de forma mais eficaz os trabalhadores portugueses. Ora, se para essa requalificação for importante um trabalhador frequentar um curso de pós-graduação ou um mestrado, em Portugal, facilmente constatará que são praticados preços proibitivos, muito graças ao facto de o único teto máximo existente ser para o valor das propinas das licenciaturas. Nos seguintes graus de ensino torna-se ainda mais evidente que a desigualdade dos rendimentos de cada um condiciona de sobremaneira o seu percurso letivo, o que compromete o papel que a requalificação pode ter no relançamento da economia do país.

Nenhum destes problemas é novo, mas o seu efeito será agravado pelo contexto em que vivemos. Apesar disso, e na minha opinião erradamente, nenhuma medida foi até agora adotada no sentido de desonerar as famílias com estudantes no ensino superior ou no sentido de rever os seus mecanismos de financiamento.

Se tal não acontecer, há um risco sério de que o sistema de ensino superior se torne mais desigual, que o seu acesso seja menos democrático e que aqueles que menos rendimentos têm tenham mais dificuldade em prosseguir os seus estudos para além do ensino obrigatório, o que compromete o desígnio constitucional do direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.

Se estas não fossem razões suficientes, há sempre uma mais pragmática: o ensino superior e a investigação são fundamentais para promover o tão necessário aumento da qualificação dos portugueses, base de uma economia mais dinâmica e assente no conhecimento.

No horizonte está a tão esperada “bazuca” europeia, que se espera se possa traduzir na injeção de capital onde ele será mais necessário para dinamizar a economia do país. É o caso do ensino superior e da investigação que devem, por isso, merecer uma atenção especial, sob pena de que, se tal não for feito, estejamos a perder uma oportunidade histórica para o futuro de Portugal e dos portugueses.

OPINIÃO - 17 de Junho de 2020, Público

Ivan Gonçalves - O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico