Gonçalo Leite Velho: “Reitores boicotaram o programa de emprego científico”

Entrevista

Presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), Gonçalo Leite Velho, responsabiliza os responsáveis das instituições do ensino superior pelas dificuldades colocadas à contratação de investigadores e diz que está por provar que os 5000 contratos assinados nos últimos quatro anos signifiquem uma melhoria em relação a anteriores legislaturas.

A “manta curta” com que Governo e instituições de ensino superior se comprometeram para os próximos quatro anos, através do contrato de legislatura, vai servir para “justificar os abusos de poder” nas universidades e politécnicos, acusa Gonçalo Leite Velho, que desde 2016 preside ao Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), uma estrutura independente que agrupa cerca de 4000 docentes e investigadores. O também professor da Escola Superior de Tecnologia do Instituto Politécnico de Tomar não poupa nas críticas aos responsáveis das instituições, que acusa de fazerem uma gestão “autocrática” do sector. 

O Governo nomeou recentemente uma Comissão de Avaliação de Alto Nível para avaliar o Programa de Estímulo ao Emprego Científico. O que espera do trabalho dessa comissão?

As minhas expectativas, e as de milhares de colegas, são muito reduzidas. Quando estas comissões são constituídas por pessoas muito instaladas no sistema, é óbvio que vamos ter uma reprodução do sistema.

Qual é sua própria a avaliação do Programa de Estímulo ao Emprego Científico?

Não tivemos ninguém com capacidade para executar o rumo. Houve uma grande resistência dos reitores à implementação do programa de emprego científico.

O próprio ministro reconheceu-o no momento em que nomeou este grupo de trabalho.

Ministro da Ciência nomeia grupo de avaliação para o emprego científico

A capacidade política é do poder político. O Snseup deu o seu contributo na revisão parlamentar do diploma [do emprego científico], através da coligação positiva que conseguimos construir.

Isso foi feito sem o partido do Governo.

Infelizmente, foi feito com todos os partidos, menos o Partido Socialista. É importante a figura do ministro e por isso é que eu falo do executor. Sempre que temos um executor que desconhece qual o rumo a tomar ou que procura desmagnetizar a bússola, temos uma dificuldade. O que conduziu a esse isolamento do PS foi deixar-se influenciar por quem tem uma visão curta do sistema.

Quem tem essa “visão curta”? São os líderes das instituições ou é o próprio ministro?

As várias debilidades dos líderes das instituições têm sido patentes. Penso que hoje em dia a sociedade portuguesa compreende melhor aquilo que se está a passar nas instituições. Em concreto com dois fenómenos que são muito prejudiciais: a autocracia e o clientelismo. Temos reitores que estão muito concentrados na sua instituição e não conseguem ter uma visão do sistema como um todo. Essa debilidade gera conflitos no interior do CRUP [Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas] e do CCISP [Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos], o que lhes retira força política.

Ainda sobre o Programa de Estímulo ao Emprego Científico, foram assinados 5300 contratos nos últimos quatro anos.

O que é que esse volume comporta? Essa é análise que estamos a fazer neste momento. Temos de ter em conta o número de bolsas de pós-doutoramento que existia anteriormente. Eram cerca de 500 lugares por concurso, por ano, mais cerca de 250 lugares de Investigador FCT. Se multiplicarmos esse valor por quatro anos, só aqui temos 3000 contratos. A aplicação da norma transitória [do diploma do emprego científico] gerou 1500 contratos. Ninguém teve ainda a oportunidade de comparar este quadro do emprego científico com o anterior.

Portanto, não valoriza que o Governo estabeleça um objectivo de contratar mais 5000 investigadores nos próximos quatro?

Não. É como a questão do aumento do orçamento. O Ministério da Economia aumenta em 42% a sua capacidade financeira. Aí verificamos quais são as prioridades do Governo. O ensino superior está na cauda [do investimento no Orçamento do Estado].

Então por que foram tão lestos os reitores e presidentes dos politécnicos a assinar o contrato de legislatura, que prevê 2% de aumento do financiamento público, por ano, até ao final do mandato?

Debilidade política. [Estes responsáveis] passaram quatro anos a queixar-se que o dinheiro não chega. Alguns até foram ao Parlamento dizer isso. Agora, quando o dinheiro não chegar, vão colocar-se perante os mesmos deputados, que vão olhar para eles incrédulos. Todos lhes vão demonstrar o que é que é o contrato de legislatura. Há mais uma coisa sobre o contrato de legislatura que me parece importante. Onde é que está o contrato de legislatura no Orçamento do Estado?

Está citado quase na íntegra.

Está, do ponto de vista do relatório. Mas o que importa é o que é que está do ponto de vista do articulado. A base do contrato de legislatura são as cativações, mas quando vamos ao artigo que excepciona as cativações, não estão lá as instituições de ensino superior. Bem sei, podemos assumir isto como um acordo de cavalheiros, e cada um que cumpra a palavra. Mas, mais uma vez, vemos o fraco peso político e o fraco desempenho político dos nossos reitores. Quando estivermos numa situação em que o ministério apertar a corda, depois rapidamente se diz: escrito não estava nada. Os meus colegas assinaram esse contrato para evitar o pior dos males, mas isso é resultado de alguém que não tem capacidade política. O Governo e os dirigentes das instituições aceitam uma manta curta. E essa manta curta serve depois para justificar os abusos de poder que estes dirigentes implementam nas instituições. A lógica para tudo aquilo que é grave e que é mal feito é não haver dinheiro.

Relativamente ao contrato de legislatura, o Snesup dizia no início deste mês que há números errados no contrato. Quais são os números que não batem certo?

Nas carreiras, o Governo apresenta uma evolução dos números nas várias categorias em que adiciona os professores convidados aos professores de carreira, [concluindo que houve um aumento do número de professores nos últimos anos].

Qual é que é a diferença entre a realidade e os números apontados pelo Governo?

É uma diferença muito significativa. O número de professores a tempo parcial tem vindo continuamente a subir. De 2012 para agora aumentou de 32% para 42%. Quando vemos as estatísticas das carreiras, vemos que o número de professores auxiliares está praticamente estável e há uma estagnação nas categorias de associado e catedrático. No politécnico, é semelhante, com uma ligeira subida motivada pelo regime transitório da carreira. Estes dados não batem certo com os números que estão no contrato de legislatura.

Estes dados errados de algum modo inquinam o que depois é o contrato de legislatura?

Não pode haver desenho de boas políticas a partir do momento em que não se conhecem os números. Há números que não estão correctos e números que não estão actualizados. No contrato de legislatura foram introduzidos os números do Observatório do Emprego Científico de 24 de Junho. Quando se está a produzir um documento em Novembro com dados que são de Junho, isto diz tudo acerca da qualidade das políticas públicas que se está a desenvolver.

Dos cerca de 4000 requerimentos do Prevpap [Programa de Regularização de Vínculos da Administração Pública], a taxa de aprovação no ensino superior e ciência não chega aos 10%. O que falhou neste processo?

Se tivermos em conta o número de contratos efectivamente realizados, é ainda mais baixo. A questão da admissão [das pessoas a contratar] é um enorme poder que foi concentrado nos reitores e é fundamental para entender a autocracia que está instalada nas instituições de ensino superior. A política desenhada por Mariano Gago previa que a carreira científica fosse paralela ao sistema universitário e que, a certa altura, ambos convergissem.

E esta convergência não está a ser feita?

Esta convergência é a razão pela qual os reitores não fizeram o Prevpap e boicotaram o programa de emprego científico. O emprego científico só foi feito quando a lei não deixava qualquer outra margem. Nós conseguimos um consenso político tão alargado que os reitores ficaram completamente isolados. Os reitores queriam concursos para que determinados interesses instalados os pudessem dominar. Neste momento, o problema principal está nos investigadores com 40 a 50 anos, aqueles que têm maior maturidade. É a esses que não está a ser dada resposta do ponto de vista da linha do emprego científico.

Não são os únicos.

Há o investigador que acabou de se doutorar e precisa de ter uma resposta; há o investigador que tem um percurso mais consolidado, mas ainda não está a coordenar projectos; há percurso do investigador que está a coordenar projectos. As linhas de apoio ao emprego científico deviam responder aos vários percursos. Não foi isso que aconteceu. O programa de emprego científico foi feito essencialmente para lugares de investigador júnior. Aqueles que têm carreiras com maior maturidade, que estavam a ser contratados pelo programa Ciência e ou pelo Investigador FCT, não viram resposta nem na norma transitória nem em nenhuma das outras medidas.

O PS também se afastou dos partidos à sua esquerda, chumbando as iniciativas de alargar as progressões dos professores no ensino superior. Também lhe parece que neste caso houve igualmente bloqueios da parte das instituições?

Temos primeiro de ter em conta que há duas progressões diferentes. Há as progressões horizontais, que deveriam ser como todo o resto da administração pública, sempre que se tinge um determinado número de pontos. E não é isso que está a acontecer. Só está a progredir quem tem seis anos de [classificação] “Excelente”. Isto não está a funcionar bem. A segunda questão são as progressões internas, onde o Governo decidiu fazer uma reforma dos estatutos de carreira através do decreto de execução orçamental. Não há memória disto. Bem sei que alguns colegas reitores gostam de fazer manobras debaixo da mesa, mas não é assim que se deve dirigir um país.

Mas era necessário resolver a questão destas pessoas?

É justo resolvermos os problemas destas pessoas. Há pessoas que estão como professores auxiliares, com agregação, têm “Excelente” ao longo de todo o percurso, já estão no nível máximo da sua progressão remuneratória, e não conseguem progredir. O Snesup será o primeiro a defendê-las. O que nós não podemos aceitar é estabelecer como único critério o tempo e nem sequer negociar isto. Há aqui ainda algo pior, que é uma reforma que vai estabelecer concursos internos que ajudam a promover a ideia de que isto é tudo uma autocracia. Procurar resolver os problemas como se fosse “​nós damos aqui um jeitinho debaixo da mesa”​ é algo que o sistema não pode ter.

Samuel Silva - 28 de Dezembro de 2019, Público