O voto electrónico

Se evoluirmos para um sistema informático, teremos de delegar em meia-dúzia de engenheiros a operação. Mesmo que não haja más intenções, qualquer bug informático pode alterar o resultado de uma eleição.

1. Sendo a abstenção crescente, é natural que surjam várias propostas que visem aumentar a participação eleitoral. No último artigo, discuti algumas delas e terminei afirmando-me contra o voto electrónico, prometendo que retomaria o assunto, explicando o porquê do meu anacronismo.

Como em quase tudo, o voto electrónico tem prós e contras. A grande vantagem de se poder votar à distância - por exemplo, por via de uma aplicação de telemóvel desenvolvida pelo Ministério da Administração Interna - é óbvia: facilita o voto. Muito provavelmente, o seu impacto seria maior para quem está fora de Portugal, até porque em todas as eleições há problemas com os votos à distância. Infelizmente, esta solução tem tantos inconvenientes que, na minha opinião, a inviabilizam.

Começo por referir uma desvantagem que me vai fazer parecer um bota-de-elástico. Como expliquei no artigo anterior, o voto individual é praticamente irrelevante, pelo que apelos racionais ao voto terão pouco eco. Participar numa eleição é um acto colectivo por excelência, porque só se vários de nós participarem é que estaremos a expressar o nosso interesse por manter uma sociedade democrática. Já há muito que antropólogos e psicólogos salientam a importância da participação em rituais para a coesão de uma colectividade. E ir votar é um ritual. Não quero dizer que corresponda a uma sacralização da democracia, mas é visível a alegria com que muitos vivem o dia das eleições, há amigos que apenas revemos quando nos cruzamos a caminho das urnas. Este ritual aumenta o nosso sentimento de pertença a uma sociedade democrática. Substituí-lo por um voto por telemóvel pode aumentar a participação no curto prazo, mas enfraquece a cola que une a sociedade. Não é claro qual o efeito de longo-prazo. Compreendo que este argumento seja vazio para quem não está em Portugal e, por isso, aceito que, caso fosse aplicada, deveria sê-lo preferencialmente aos círculos da emigração, nas eleições legislativas. Afinal de contas, esses eleitores votam por correspondência.

A segunda desvantagem que encontro no voto electrónico é tornar o processo ininteligível para a enorme maioria dos eleitores. Para o bom funcionamento da democracia é essencial a confiança que se tem nos processos. A grande vantagem de um sistema em que cada um põe uma cruz no papel e depois se contam as cruzes é que todos o percebem. E, como o percebem, todos podem participar no seu escrutínio. Se evoluirmos para um sistema informático, teremos de delegar em meia-dúzia de engenheiros a operação. Teremos de confiar neles dado que ninguém terá capacidade para os verificar. Mesmo que não haja más intenções, qualquer bug informático pode alterar o resultado de uma eleição.

Como é explicado num artigo da Associação Defesa dos Direitos Digitais (D3), não há sistemas informáticos imunes à fraude. Mesmo que admitisse que com um sistema de voto informático a fraude fosse mais difícil, não ficaria mais descansado. Havendo fraude informática, ela poderá ser feita em larga escala e poderá ser determinante para o resultado final de uma eleição. O actual sistema é muito vulnerável a pequenas fraudes — poucas pessoas reunidas a contar os votos de uma urna facilmente acrescentam uns votos e facilmente se transformam abstencionistas em votantes ou redistribuem votos em branco —, mas por serem pequenas dificilmente serão determinantes no resultado final. O sistema de contagem de votos é tão ineficiente que é impossível montar um esquema de fraude generalizada.

Ainda relacionado com a questão da fraude está o segredo de voto. Aqui na Universidade do Minho já houve eleições em que se pôde votar online. Confesso algum desconforto em me ser impossível assegurar que o meu voto é mesmo secreto. Afinal de contas, tive de registar o meu número de docente e o sistema teve de recolher o meu voto para o atribuir a alguém. Suspeito que não haja forma matemática de garantir que seja impossível saber quem votou em quem. As minhas suspeitas saíram reforçadas ao ler o artigo da D3 que referi acima. Como lá se explica, os sistemas online que usamos (declarações de IRS, transferências bancárias, etc.) são fundamentalmente diferentes de um voto electrónico. Simplesmente não há solução teórica que garanta que os dados são correctamente processados, além de que, nesses sistemas, o anonimato não é uma questão. Por exemplo, quando se faz uma transferência bancária, o banco tem de saber de que conta transferir e, quando se submete o IRS, a Autoridade Tributária tem de saber de quem é a declaração.

Mas, na minha opinião, o problema é ainda mais profundo. Mesmo que houvesse uma solução matemática para os problemas informáticos referidos e mesmo que essa solução fosse exequível, eu continuaria a ser contra a possibilidade de se votar à distância. O motivo é muito simples, o voto à distância é um voto muito facilmente pressionável. E podemos pensar quer em pressões benignas quer noutras.

Entre as mais benignas estariam as minhas filhas, que quereriam ver-me votar e me chateariam para votar em quem elas quisessem. Mas algo semelhante se poderia passar em famílias com um tipo manipulador e controlador. Facilmente um tirano diz à filha de 18 anos que ou vota como ele quer ou lhe corta a mesada. O voto electrónico a partir de casa permite isso. Alguém que tenha um familiar acamado facilmente votará por ele.

Podemos mesmo pensar em casos mais extremos. Por que motivo eu não posso vender o meu voto? Actualmente, não posso vender o meu voto pela simples razão de que me é impossível garantir a fiabilidade da venda. Como o voto é secreto, podem pagar-me 100 euros para votar no partido A, mas, no segredo da cabine de voto, posso votar em B. A partir do momento em que seja possível votar a partir de casa, já poderei garantir que votei “bem” e, portanto, vender o meu voto. O sonho de muitos, transaccionar o voto numa espécie de mercado eleitoral, passa a ser possível. A dessacralização do segredo de voto simplesmente arruína com a integridade de uma eleição.

2. No último artigo, referi os motivos que me levavam a ser contra o voto obrigatório. Esqueci-me, no entanto, de referir o único argumento a favor do voto obrigatório que considero válido. É um argumento simples. Alguns dos que se abstêm estão entre os excluídos da sociedade, mas, como não votam, não beneficiam de promessas eleitorais e de políticas a seu favor. Sendo obrigados a votar, os políticos não os poderiam ignorar e teriam de ter os seus interesses em consideração.

Opinião - Luís Aguiar-Conraria - 16 de Outubro de 2019, Público

Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho